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Crónicas

Canal da Tarde

O  ENTERRO
O enterro

  Era um camarada branco, com jeep de luxo, dentro do labirinto de um bairro periférico. Viu um ajuntamento e seria ali. Entrou. A casa era modesta, mas limpa, como aliás é próprio das casas no planalto, com o terreiro da frente e o quintal de trás diariamente varridos.              Começou por cumprimentar os familiares, ou que lhe pareciam familiares. Dizia qualquer coisa que ninguém entendia - entre o boa tarde e os pêsames. Sentiu a admiração nos olhos de todos. Ali estava ele, apesar de branco, a dar um exemplo de sã camaradagem para com o falecido, que era, aliás, uma pessoa exemplar. Ali estava ele, a deixar no coração daquela gente - pelo menos nos familiares que eram possivelmente Kwachas - uma semente de dúvida. O homem do sul é sensível a estas pequenas atenções. 

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    Procuraram uma cadeira para que se sentasse. Ficou no trono, a remoer tempo, os outros em bancos gentios ou na esteira.

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    Sentia as perguntas nos olhos baixos dos parentes: “Esse branco, conheceu o nosso velho d’aonde? O nosso falecido era criado desse camarada? O nosso falecido nunca foi criado de nada. Só chegou aqui na cidade faz três anos. Se conheceram no Chinguar? Aí sim, se conheceram. Ou na Missão do Dôndi. Aí sim: os brancos que estavam lá, não eram iguais aos brancos colonos que estavam cá. Então, esse camarada, pode ser filho do missionário... Deve de ser.” Sossegaram os pensamentos, mas não lhe sossegavam as costas que a cadeira era especialmente incómoda, até que um jovem, digamos, mais urbanizado se aproximou dele para perguntar:

​

    - O camarada, vai mesmo acompanhar até no cemitério?

​

    Claro que sim, que vou. Para isso é que estou aqui: acompanhar o nosso camarada no seu                 passamento físico.

​

    - Muito obrigado. O Camarada pode dar boleia? Tem umas velhas que não podem mais    andar. O camarada lhes dava boleia, depois lhes trazia em casa.

​

    Pois claro. O carro está ali para isso. Chegando a hora, a gente vai.

​

    E foram. As velhas, eram uma cinco, arrumadas sabe-se lá como. Tudo atrás. Nenhuma se sentou ao lado do condutor. Ele a dominar a impaciência de um carro em primeira, a passo de enterro: pára aqui, para acolá, canta e reza - que apesar dos tempos novos, os mais velhos não se desapegam das crenças antigas. Padre, pastor ou catequista, é que não tinha. 

​

    Normalmente substituíam-se as orações finais e aqueles benzimentos que são próprios que o  padre faça, pelo elogio do defunto. Hoje, tinha a certeza, em homenagem à sua presença, o palavrório seria em português. Poucos entenderiam o que o orador dissesse, mas educação é assim.

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    Foi acompanhando a carreta, um pouco desnorteado porque não via ninguém do Partido. “Esses camaradas são lixados. Se em vez deste pobre diabo que era um militante de fibra, fosse um outro qualquer, até o Camarada Comissário estaria aqui. Isto não se faz: um velório sem ninguém do Partido. Aguardemos pela próxima reunião do Comité Provincial: vou desancá-los.”

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    A velha que ia ao lado tropeçou (ou numa pedra, ou na idade que é um pedregulho bem maior) ele amparou-a. De braço dado, a velha tinha um andar mais animado. Agarrava-se a ele. Como era um camarada bastante alto, todo se entortava para a direita, porque a velha que já era pequena por natureza, ainda mais pequena se tornara com o tempo. Tentou tirar um pouco do braço, para se endireitar, mas a velha sentia-se bem - é o deixas! Ia ali firme, como naufrago agarrado a uma bóia de salvação.

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    Ele sentia o ridículo da sua posição entortada: “Olha se agora aparecessem os camaradas do Partido (embora tarde, esses gajos chegam sempre) e o vissem assim. Que gozo, meu Deus! Aliás, que gozo, meu Lenine! Ora porra para os meus pensamentos. Mas o que há-de pensar um tipo que sai de uma cadeira que lhe dá mais cabo ainda?

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    Felizmente chegaram à beira da cova. A velha desagarrou e começou a chorar. Foi sinal dado          para que todos chorassem. Ele não, que naturalmente não tinha grandes habilidades para o choro. Abriram o caixão: esticado, firme e sereno o morto ali estava. “Porra! (era a única asneira que se permitia dizer mesmo em pensamento) que me enganei no enterro. Agora faço como? Aguenta, meu caro. Aguenta até ao fim.” 

​

    Um homem alteou-se num montículo de terra tirada da cova. Ficou como um padre num púlpito de igreja e começou a arengar virado para ele: “Camarada excelentíssimo: a nossa família agradece muito a Sua Excelência nosso camarada, de vir aqui levar o nosso mais velho à última morada. Sua Excelência, nosso camarada, grande engenheiro da nossa terra, militante do M.P.L.A, Partido do Trabalho, tinha as suas coisas para fazer, mas chegou mesmo aqui para chorar com as nossas lágrimas...” O tipo é poeta ainda por cima.

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    E ele a sentir-se mal porque aquilo não era um elogio fúnebre, era um elogio ao vivo que ali estava e era ele. “... e pedimos a Sua Excelência nosso camarada, umas palavrinhas para o nosso velho...” Afinal! Quem ia fazer mesmo o elogio fúnebre era ele. Subiu ao púlpito. Os olhos todos pregados nele. As velhas e a generalidade das mulheres esqueceram-se num repente de chorar. Atentas. E ele firme: “Estamos todos consternados com o passamento físico do nosso camarada. Homem de bom coração. Homem de trabalho...” generalidades e palavras caras que ninguém entenderia a terminar com “...a sua alma que descanse em paz! E todos, marxisto-leninisticamente a responder em coro: “Amem!”. O que vale, é que não estava ali nenhum camarada do Partido.

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    Fez, mais despachado, o retorno ao bairro, quase retirou as velhas ao colo - as velhas tinham já com ele uma certa confiança familiar, havia qualquer coisa de íntimo que os ligava, uma certa cumplicidade. Regressou à cidade e aprendeu duas coisas:

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    Primeira que e enterro do defunto verdadeiro fora transferido para a terra da sua naturalidade:a Ekunha. Segundo que havia desconfiança de ter havido uma reunião de Kwachas no cemitério, com a presença de um estrangeiro que ali estivera, propositadamente para deixar instruções.

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    O pior de todos os problemas é que não se sabia para onde o estrangeiro fugira, porque nenhum dos Postos de Controlo das várias entradas e saídas da cidade, se deram conta de um carro assim que começou por ser jeep e passou a carro de guerra que ninguém sabia muito bem como seria.

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    - O Camarada engenheiro, não deu conta de um carro estranho, de um movimento qualquer, quando esteve no outro dia no cemitério, naquele seu enterro enganado?

Não. Por acaso até não. Não dera conta. 

O ARQUITECTO DO INFERNO
O arquitecto do inferno

Crónicas

Canal da Tarde

Sempre se considerara uma boa pessoa. Se é  certo que a gente não se deve gabar que sou isto, que sou aquilo, não há ninguém que não pense o que é, ou como julga ser. Era  trabalhador. Era caridoso. Era sensível. Era também crente, não muito praticante, mas que não enjeitava a religião que tinha.

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  Quando a Independência chegou e antes dela a paixão dos Movimentos, ele seria dos únicos angolanos que não pendia nem para este, nem para aquele. Diziam-lhe:" Um homem não se pode alienar da vida do seu país". Respondia:" Precisamente por isso  é que eu trabalho. Os outros que escolham, eu só sei trabalhar ".

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Talvez por isso, se era Chefe de Departamento no tempo colonial, Chefe de Departamento ficara até os dias de hoje. Só com uma diferença: tiraram-no de um Departamento importante e inventara-lhe um outro de Arquivo e História que ninguém sabia muito em o que era num ministério como o seu. Isto, enquanto ele não começou a espanejar aqueles papéis velhos. A dar valor ao lixo, como os outros diziam. Fez exposições que o Ministro inaugurou, o próprio Presidente apreciou, enfim um êxito de respeito no dia próprio do Partido.

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Com o andar do tempo começaram-se a esquecer de que ele era um angolano um tanto especial, mormente sem ambições políticas e começaram-no a utilizar - digamos assim - como conselheiro. Alturas houve em que ele foi o verdadeiro Director Nacional, igualmente o Vice-Ministro e por aí. Como era discreto, confiavam-lhe os dossier, ele fazia o despacho naqueles papéis amarelo-colantes e o director tinha só que copiar com a sua letra e assinar por baixo.

Durante anos viu descer e subir muita gente: contínuos passaram a chefes de, escreventes a directores, vice-ministros  ou comissários. Ele trabalhava. Não achava nem bem nem mal. Se a Lei permitia, quem era ele para dar opinião sobre os casos? Tinha a condescendência de pensar que as pessoas não são só defeitos e analfabetismos. Têm outras virtudes e saberes. Olha os sobas: quantos deles (para não dizer todos) criativos, conhecedores e criteriosos nos deveres da sua governação...

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Um dia acordou e sentiu que aos quarenta e cinco anos estava a atrasar-se no casamento. Chegara o dia em que deveria responder à pergunta: ou caso agora, ou decido-me a ficar solteiro toda a vida.

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Como estas decisões precisam sempre de duas pessoas para serem tomadas, começou a reparar com uma  outra atenção  no mulherio que tinha no serviço, as  que todos os dias encontrava na rua quando ia para casa  e uma ou outra vez,  quando era obrigado a ir a uma festa - casamento, baptizado, ou quê... (é  dizer que nunca lhe tinham distribuído carro,  facto que era sempre justificado por não ter carta.) 

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Foi aí nos quê que a coisa começou. Explico: primeiro ele não procurava uma mulher bonita, tipo boazona. Desejava, isso sim, uma jovem já chegada aos trinta, serena, já fora da idade das grandes paixões, dos príncipes encantados, que viesse para ele assim como quem é família. Segundo: os quês de que eu falo são as festas que não são festas, mas podem durar dois e três dias de comes e bebes. São os óbitos.

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A gente está a  velar o morto e lá pelas tantas vem de mansinho um café, bolos secos, uma ginguba torrada e, mais adiante, em apertando o calor da noite (e o fresco ao despertar da manhã) para que ninguém adormeça vão quatro ou cinco cervejas, ainda assim, respeitosas e envergonhadas.

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Depois é o acompanhamento: carros, boleias e camionetas de carga. A família à frente no carro funerário (a viúva ficou na cama a viuvar o marido e dali não se levanta antes de sete dias) leva-se então o corpo a cemitério. Um Kota de respeito comanda quem empurra a carreta:  " E agora os parentes chegados: irmãos, filhos, sobrinhos e primos "... " Chamamos os amigos e colegas do falecido"... "Agora os vizinhos"... isto tudo até à cova, onde uns tipos sujos e patibulares apagam as beatas à aproximação do cortejo.

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Tudo pára. O sol aquenta-se na poeira. Abre-se o caixão e são as últimas despedidas. Estende-se no rosto do ente querido um lenço branco para que a terra lhe não suje a cara. Fecha-se a tampa. O dono do óbito dá a sua ordem. O coveiro mais velho aproxima-se e com a picareta de lado dá duas, três pancadas na tampa do caixão até partir. A família suspira: nenhum ladrão desenterrará o caixão para vender no outro morto, incomodando o repouso eterno desse aí. 

O acompanhamento dispersa-se no regresso e todos no seu carro, ou na sua boleia vão-se reagrupar na casa do óbito. Entram, não sem antes lavar as mãos. À entrada da porta está a bacia, a toalha e o sabonete que ninguém usa. Conversa aqui, cigarro além, à espera da canjica, do peixe frito, do mufete, do muzongué, das respectivas cervejas ou vinho. Às vezes, a família do falecido, come à parte a comida de que ele gostava. É como que uma última homenagem. Assim se vive! Assim se morre! Assim mesmo, também se come.

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Foi aí, num óbito desconhecido a que fora empurrado por um colega (amigos, não era por assim dizer, que tivesse):" Vem lá comigo. Estas coisas chateiam-me ir sozinho"... Mas eu não conheço o falecido..." Isso tem importância, tem? "... lá foi, empurrado por aquela sua fraqueza de não saber dizer que não.

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Chegou. Sentou-se. Deixou-se ficar pelo quintal que era amplo e arejado. Sítio preparado para grandes farras. A churrasqueira. Uma cozinha só para as ocasiões e mesas como num restaurante. Distraído olhou para aquele "bar" de família decorado com gosto. Depois olhou com atenção para a casa - um palácio! Ia apanhando uma ou outra palavra que os grupos diziam entre si - muitas e várias conversas sobre o falecido, que por acaso, como todos os falecido, era muito boa pessoa: um tipo sensacional que deixava três viúvas e oito filhos, quando de repente...

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...quente, avassaladora, uma onda que lhe queimava o baixo ventre (ali onde  homem é mais homem) e subia e se entranhava no vazio do estômago e lhe sufocava o coração e se transformava numa vaga de ódio, numa tempestade de inveja: "Como é que este gajo tem uma casa assim que eu nunca terei? Quem foi o pobre do colono que andou uma vida inteira a construir isto para este gajo ficar com  ela? ". E pôs-se a ralhar com o morto, numa alegria imensa de o saber ali, estendido, vulnerável, mudo que nem uma pedra burra.

​

" Então, meu cabrãozinho, roubaste o que era dos outros e onde está agora o que é que é  teu? Julgavas que eras eterno? Já imaginaste, mais daqui a bocado, a tua santa família à porrada uns com os outros: porque se eu sou filho, a minha mãe também é mulher e o meu avô é sogro... E quantos gajos já estão prontos para saltar em cima da herança das tuas mulheres? "

Estava tão entretida nesta conversa de insultos e gozações quando chegou o amigo que cumprida a obrigação dos pêsames se queria ir embora:

​

- Vamos?

​

Foi. Foram. Ele, o colega, e o espanto que ainda lhe roía por dentro.

​

  Não dormiu durante toda a noite. Queria encontrar uma justificação para aquela súbito, violento e autêntico ódio por quem não conhecia. "Eu não posso ser tão sacana assim! ... Eu posso-me considerar uma boa pessoa!... Eu sempre fui um gajo de sentimentos, de educação, de saber estar como se deve... "

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Pelo sim, pelo não, começou a experimentar as suas reacções aos óbitos. Não faltava a nenhum. E a história era assim: em casa de pobre comportava-se normal; em óbito de rico insultava o morto, ria-se do falecido e, principalmente: sentia uma alegria enorme de o saber na posição dos que não se tornam a pôr de pé.

​

Começou a andar preocupado, porque isto não é normal num homem comum, quanto mais num Católico Apostólico Romano, que se nem sempre ia à missa se não esquecia de comungar pela Páscoa da Ressurreição.

​

Procurou um padre que lhe pareceu que pudesse ouvir com o tempo e a atenção que o caso requeria. Este sossegou-o: "Reze. Reconcilie-se com as injustiças do Mundo: o Senhor disse: pobres tê-los-eis até ao fim dos séculos. Não queira ser juiz dos seus irmãos. Só o Senhor é Juiz. Há pobres e ricos. Há ladrões e gente honesta. Já reparou que até haverá pessoas que nunca roubaram por falta de iniciativa, ou por medo de arriscar?... que, quase se pode dizer que não roubar será também um pecado de omissão de onde talvez derive a inveja dos que não têm nem procuraram ter? 

​

O padre estivera a falar dele, ou só a sondar a possibilidade de ele ser também um desses ladrões que não roubam por medo, que não se arriscam na política por receio de perder o quase nada que têm e o sossego que apreciam. O sossego e esse vício espantosamente virtuoso que é trabalhar, trabalhar, trabalhar. Levantar-se de manhã, partido, rebentado e sentir uma satisfação enorme de se confessar: "Ontem trabalhei que nem uma besta! " Tudo isto como se fora rei, campeão, figura ímpar no mundo inteiro.

​

Incomodava-se agora as noite. Toda  a gente se adormece com truques: uns viram-se para a esquerda, outros lêem até deixar cair o livro, estes pensam na vida porque não tiveram tempo de o fazer durante o dia, aqueloutros examinam o que têm a fazer no dia seguinte, ele... modernizava o inferno.

​

Isto é assim: como sabeis, já ninguém acredita em diabos vestido de vermelho, com rabo que não serve para nada e cornos que nunca utilizam. Mais fácil do que marrar é dar uma espetadela com o garfo com que andam sempre pintados. Sendo assim e não se compadecendo esta imagem antiga com os tempos modernos, são os diabos nos dias de hoje executivos simpáticos e eficientes, mulheres lindas e insinuantes, porque só assim, nesta pressa em que vamos, é possível achar que vale a pena cair em tentação.

​

Depois, como em todo o lado, há o problema do espaço: com tantas almas infernizadas desde o princípio do Mundo (Neros, Calígulas, Messalinas e que mais) há necessidade de compactar as almas de  modo a ter um sofrimento mais ecológico e ocuparem menos espaço. Assim (inventou ele há duas noites e todas as noites aperfeiçoa, puxa pela imaginação, modifica e adormece) as almas saem do aparelho de compactação onde são reduzidas ao tamanho de hambúrgueres, mas sem perder nada da sua individualidade e seguem para as frigideiras eléctricas e são arrumadas em gavetas de silêncio. Não se comunicam. Não se conhecem. Pensam-se sozinhas e únicas. O verdadeiro tormento é a solidão e quando alguma delas intenta resignar-se, e achar que mais vale dormir e esquecer, a gaveta abre-se e ela entra em combustão automática até reatingir os níveis de desassossego e desespero convenientes.

​

Isto sonhava ele todos as noites. Aliás agora, começara durante o dia a retocar o inferno que modernizara.

​

Encontrava porém a lucidez suficiente para se perguntar: "Afinal, estarei doido? Uma pessoa normal não se compraz com uma coisa destas - brincar aos inferninhos. Mais: instituir-se em arquitecto do inferno, compulsivamente e sem arrependimento, é atentar contra o Poder de Deus.

​

Rezava. Voltava ao padre, recebia conselhos e não obtinha resposta. Até que um dia, na aflição de um vizinho, foi ao hospital onde o filho deste agonizava. Foi, entre seco e empurrado, para lhe dar conforto. Foi para o ajudar mas teve receio: o vizinho era estupidamente rico. Teve medo de disparatar e afligir o menino. Num acesso de maior choro o vizinho saiu para o corredor. E ele a querer distrair-se daquela obsessão começou a pintar o céu para o menino ouvir: "São anjos e Deus, olha só como tudo canta... "

​

O menino abriu os olhos e chamou por ele como se fosse o pai. Deixara de ver. Já ia a caminho.

​

-       Papá. Paizinho. 

​

Apertou-lhe a mãozinha já sem força e sentiu que poderia, mas não era suficientemente homem para pedir um milagre. Vivera e nunca se interessara por amar: permitiu que o menino morresse. Seco e frio, perdera a capacidade de chorar. Sentiu que deixara de ser humano.

​

Saiu para a rua. Tal como o menino, olhou e não viu. Ouviu sim: a buzina do camião. Já não sentiu a travagem nem o impacto - via agora Deus e os Anjos que descrevera ao menino. Cantavam. O menino sorria e estava lá. Estendia-lhe as mãos e chamava:

​

- Papá. Paizinho

Milagre de natal

Crónicas

Canal da Tarde

MILAGRE DE NATAL

O Menino-Jesus é mau. Vou-lhe queixar no Jesus-Grande que ele me roubou o meu passarinho azul.

 

O Menino-Jesus não rouba?

 

Rouba, sim senhor. Rouba de inveja. Quem me disse foi o meu pai que ainda hoje de manhã, quando eu estava a chorar porque o meu peito-celeste tinha morrido. Ele falou assim:

 

- Deixa lá, filho. Ele agora está no céu a cantar para o Menino-Jesus.

 

O meu pai sabe tudo do céu. Quando a minha mãe morreu, ele falou assim a chorar quando lhe perguntei:

 

- E a mãe, papá?

- A mãe foi para o céu. Deus levou-a.

 

Então: primeiro esse Deus levou a minha mãe; agora o Menino-Jesus rouba o meu passarinho... lá no céu é casa de bandidos, estás a ver? Quando eu for grande, pego numa AKÁ, mato essa bandidagem toda e trago a minha mãe e o meu peito-celeste. No céu só vai ficar o Jesus-Grande e os anjos que lhe ajudam na fábrica dos passarinhos. Meu pai é que sabe e ele é que me disse: lá tem uma fábrica de pássaros que fica em cima das nuvens. Lá é que fazem os peitos-celestes. Os pássaros feios, não. Esses nascem mesmo dos ovos nos ninhos das árvores. Jesus-Grande é que pinta as penas dos anjos com a cor do céu - umas azul de dia, outras escuras, de azul da noite - mistura tudo com olhinhos e bicos e patinhas pequeninas e põe nas máquinas a trabalhar. Elas trabalham, faíscam os trovões e começam a cair peitos-celestes na caixa. Quando as caixas estão cheias, vêm dois anjos, chegam ao fim da nuvem e despejam os passarinhos cá para baixo.

 

Ali vêm eles, a dormir. Com o frio do vento acordam. Com o susto abrem os bicos e começam a cantar. Depois estendem as asas e voam. 

 

O meu peito-celeste quando aterrou vinha numa bisga tal que torceu uma pata. Foi aí que lhe apanhei e fui levar ao meu pai para o consertar. O meu pai consertou a pata do Zezinho (foi assim que eu lhe baptizei com água mesmo da igreja. Lhe tirei lá com uma caneca). Meu pai pôs dois palitos e juntou tudo com fita-cola e, dois dias depois, o meu peito-celeste já podia andar.

​

Ele ficou com a pata um bocado torta. Não importa: é um pássaro deficiente de guerra, como esses militares e quê, que andam de muletas. Deficiente sim, mas tinha boa cabeça. 

 

Aprendia tudo: saltava para o ombro, capengava, ia dar uma volta no quintal, mas voltava sempre a casa. Ficava no quarto à minha espera. Aprendeu a andar na minha cabeça, a cantar lá em cima, a catar os meus cabelos. Pena que eu não tinha piolhos como os outros meninos. Ainda perguntei ao pai:

 

- Pai, como é que se arranjam piolhos?

- Porquê?

 

E eu expliquei:

 

- Se eu tivesse piolhos, o meu passarinho podia comer na minha cabeça quando tivesse fome.

 

Então o pai explicou que os peitos-celestes não comem piolhos, o que é muito mal feito. Vou rezar ao meu Anjo da Guarda para dizer ao Jesus-Grande, que tem de fazer pássaros mais bem feitos. Vocês acham que os peitos-celestes têm anjo da guarda. Já pensei até: e se o meu anjo da Guarda fosse mesmo o meu passarinho que veio à terra disfarçado?

 

Foi aí que eu rezei mais alto e o Menino-Jesus-Bandido ouviu e veio cá baixo e se invejou com o meu passarinho e o levou com ele. Se lhe pudesse encontrar dava-lhe uma cabeçada. Por isso fui perguntar ao meu pai:

 

- Pai, como é que a gente faz para morrer?

 

E o meu pai respondeu como sempre, a perguntar:

 

- Porquê?

- Precisava de ir ao Céu dar umas porradas no Menino-Jesus.

 

E o meu pai explicou:

 

- Ninguém faz nada para morrer. Só Deus é que sabe quando a gente vai morrer.

Eu mesmo nem gosto de Deus que me levou a minha mãe. Não quero falar com ele. Ele mesmo quando vier me dizer: “ Vou-te levar”, eu lhe respondo: Experimenta só. Te lixo, meu...

​

- Pai: o Jesus-Grande faz milagres.

- Porquê?

- Vou-lhe pedir para ele ir roubar o meu peito-celeste que está em casa do Menino-Jesus-Bandido.

- O Jesus-Grande não rouba.

- Mas pode ir queixar na Nossa Senhora que o pássaro não é dele.

- Quem sabe se pode. Escreve-lhe uma carta.

- Dessas do Pai Natal?

- Dessas mesmo.

 

Eu ainda não sei escrever de escola, mas posso fazer o desenho do meu passarinho e depois à noite falo com Jesus-Grande que anda disfarçado de Pai Natal. Então, ele ouve tudo muito bem. Pega no meu desenho com a fotografia do peito-celeste e vai a casa de Nossa Senhora: TUM,TUM,TUM. - “ Sim. Quem é?” Sou eu o Jesus- -Grande. “Ora viva! A saudínha como vai?” Conhece este passarinho? “ Conheço, sim senhor. É o peito-celeste do meu filho.” Ai não é não. Este peito-celeste é de um menino da terra. “Ai o malandro deste rapaz que só me dá arrelias. Ó Jesus! Ó Menino Jesus, vem cá.” É o vens! O Menino bazou para não levar uma sova e o Jesus-Grande, trouxe-me no Natal o meu peito-celeste dentro de uma gaiola. Meu pai avisou:

 

- É preciso ter cuidado. Tens de lhe ensinar tudo, tudo. Ele lá no Céu esqueceu o que lhe ensinaste.  

 

Pudera! Com um miúdo daqueles que não sabe fazer nada. E ensinei, ensinei, ensinei. Um dia abri a gaiola e a janela e disse-lhe:

 

- Escolhe: se queres vai embora.

 

Ele ficou todo coitadinho: saltou para o fio de estender a roupa, voou à volta da mangueira. Pousou. Andou ali a xeretear de ramo em ramo e depois mergulhou um voo picado e m’aterrou na cabeça: “TUM,TUM,TUM” - Quem é. “Sou eu o Zezinho” - Queres o quê então? “Quero ir brincar contigo”. 

 

E fomos. Pus o Zezinho no ombro para invejar o Menino-Jesus-Bandido. Toda a gente que olhava para o meu peito-celeste: tão esperto, tão lindinho, tão voador. Dava uma volta e voltava. Lá no Céu, o Menino-Jesus-Bandido chorava. Bem feito! Até lhe ouvi a mãe dele a ralhar:

 

- Ou te calas já, ou levas uma surra que nem queiras saber...

 

Nossa Senhora: dá-lhe mesmo. Esse miúdo anda muito abusado com as coisas dos outros. Dá-lhe, mesmo. Com o chinelo... Bem feito! O Menino-Jesus chorava. A Mãe dele, batia, e o meu passarinho voava.

MEU AVÔ SALUSTIANO

Crónicas

Canal da Tarde

Meu avô Salustiano

Meu avô Salustiano, aos noventa anos de idade, fez uma reunião de família. Seriam ao todo setenta e dois filhos, trezentos e vinte e seis netos, cento e dois bisnetos e uns quantos trinetos, para aí entre os quarenta e os cinquenta. Esses, não estavam ainda assentes no seu livro de linhagem.

​

Tudo quanto o meu avô fazia, era escrito em canhenhos comerciais. Tinha  paixão pela escrita, pelo desenho das letras, pela caligrafia. Passava horas a escrever. Num livro gordo do Deve e Haver tinha uma folha para cada filho. Cada um com o seu nome (e o da sua mãe também) data de nascimento e etc. Porque embora houvesse a Mamã-Grande que, por direito, era a mãe de todos os seus filhos, cada seis, ou sete deles, tinha uma mãe própria que os havia nascido. 

​

Do velho, da sua juventude, contavam-se coisas. Não se sabia onde começava a fantasia e acabava a verdade. Tudo estava confundido. Ele próprio dizia que viera dos matos ainda miúdo de doze ou treze anos. Chegara à grande cidade e, por incrível que pareça, o que mais o atraíra tinham sido os padrinhos: senhores de chapéu, casaco, corrente de relógio a lhes atravessar o peito que amergulhava no bolsilho do colete, gravata fina, botins ou sapato branco (é conforme) a desviarem-se das lamas do bairro.

​

Iam pelas ruas e vinha, aqui e ali, um miúdo, limpando rapidamente a boca e esfregando as mãos no calção mais ou menos sujo, pedir a benção:

​

- Deus te abençoe - resmungava o padrinho, fazendo uma vago sinal da cruz.

​

Um dia experimentou. Deixou passar um padrinho e foi atrás dele.

​

- A Sua Bença Padrinhe - e fez o gesto de ajoelhar e beijar a mão.

​

- Deus te abençoe - mas quando ia a traçar, distraído, a cruz sobre a cabeça do miúdo, admirou-se: e tu quem és afinal?

​

Não deu tempo e fugiu, deixando o padrinho confundido. Um padrinho que se preze tem afilhados às dezenas, mas mesmo assim, por um a gente tira a cara do outro. E este não se parecia com ninguém.

​

Meu avô Salustiano jurou que havia de ser um padrinho e tanto. Foi padrinho de dezenas de crianças e dos seus próprios filhos e netos. Parou nos bisnetos, porque como a família já estava dispersa, não podendo ser por igual, padrinho de todos, não era de nenhum. Se havia virtude que prezasse muito, era a da justiça. 

​

Casara cedo - miúdo ainda dos seus dezassete ou dezoito anos, tendo Mamã-Grande uns vinte e quantos. Encalhada e sem casamento já estivera na cidade (um dinheirão, queixava-se o pai) onde passara despercebida aos olhos masculinos. Parecia uma menininha. E nem o dinheiro do pai (no mato, e com fama de que ter muito oiro enterrado) aliciou alguém. Unhas de fome reconhecido, até pelo dote que oferecia (uma ninharia!) só um genro burro quereria sustentar a filha de um sogro rico, à espera de ganhar a herança.

​

Regressou, mulata fina, pequenina e redonda, a bordar ponto de cruz, dias em cima de dias. Meu avô Salustiano que era homem com faro, fixou a bordadeira e viu mais longe: ali estava quem o levaria a ser o padrinho que sonhava.

​

Fez frente ao futuro sogro, com uma proposta que o homem não estava à espera.

​

- Porque não monta uma casa na cidade e vende directamente, em vez de dar lucro a intermediários?

​

O velho era um tipo muito cheio de cautelas, mas directo:

​

- E ponho quem à frente do negócio?

​

- Eu próprio.

​

- P’ra me roubares?

​

- Caso com a filha de vocemecê.

​

 O vendeiro ficou atónito. Ainda ensaiou um, “olha o preto de merda”, mas pensando melhor: por uma palavra se ganha, por outra palavra se perde. O raio da filha não fazia nada. Só despesa: linhas, bordados e mangonhices... Mais aproveitadas estavam as outras raparigas no quintal: matumbas mas trabalhadeiras. Não enjeitava o seu sangue, mas também não fazia de parvo. 

​

Meu avô Salustiano sabia apanhar as pessoas no seu momento fraco de hesitação:

​

- Mais ainda: com a sua filha, levo-lhe as outras todas que vocemecê tem aí. 

​

Ora, parece que temos negócio: que melhor posso eu arranjar para genro? De uma só vez fico sem responsabilidades: nem filhas, nem despesas. Ninguém pode dizer que não as encaminhei. Em vez de caírem por aí nas mãos de um qualquer.

​

O Casamento foi mesmo assim (só muito mais tarde foram à Igreja) e lá seguiu a noiva, os seus bordados e o séquito das suas irmãs que eram sete. Tudo até aí bem: Mamã Grande engordava, feliz na sua gravidez e com ela as duas irmãs maiores. Avô Salustiano explicara:

​

- Senhora D. Angelina, não a quero ver pelos cantos a fungar que meu marido dorme ou não dorme com as minhas irmãs. Durmo, sim senhor. Antes eu que sou pessoa de respeito, que outro homem. Quero que a Senhora meta isto na cabeça: vocemecê não é uma mulher, é uma Senhora. Dona desta casa. Dona das suas irmãs também. Dos filhos das suas irmãs. Continue nos seus panos e elas que tratem da casa e de si, como se fosse uma rainha.

​

D. Angelina, engoliu uma lágrima mais tremeluzente e rebelde, e achou que o marido tinha razão. Foi para dentro ver se a mesa estava posta e esperou que o marido se sentasse. Era o seu momento de glória: de todas as mulheres que Salustiano teve, tinha e teria - a única que se sentava à mesa com ele era D. Angelina Sirim  Salustiano. Ele era, como vedes, um homem de respeito e de princípios.

​

Os filhos nasceram: António, Bernardo e Catarino, começando assim um alfabeto que haveria de dar várias de voltas sem se repetir. Os negócios iam bem: o sogro (Deus o tenha!) morrera quase logo e ele ganhara o contacto privilegiado com os sobas que lhe continuavam a enviar longas caravanas de negócio.

​

Dez anos passados e já era um senhor - um padrinho com trinta e tantos filhos. Um único problema. Ou melhor dois:

​

Primeiro: um dia deu conta de que um branco desses degredados, tentava agarrar a sua terceira cunhada. Ela, encostada ao muro, debatia-se. Ele foi dentro, pegou num sarrafo e Zás! O gajo cambaleou e caiu de borco no chão. Valeu o vendeiro da frente que veio a correr:

​

- Ó Senhor Salustiano, veja lá não se desgrace.

​

E saiu dali com o filho da mãe do patrício que ainda mal sentado num banco, com a cabeça aberta, balbuciava apalermado.

​

- Mas quem é o sacana do preto que se atreveu a bater em mim.

​

- Olhe - explicava o vendeiro, enquanto esperava pela água quente que pedira ao mulherio do quintal, que estava numa grande agitação do que é que foi, do como é que não foi - tenha cuidado que este preto (e acentuava a palavra com jeitos gozões) é um senhor bem colocado até no Palácio. Veja lá não vá parar com os costados a Caconda, ou se um dia acorda criado de um desses sobas lá do fim do mundo. Sabe quanto é que vale um escravo branco, sabe? Se quer um conselho, nunca mais apareça por aqui...

​

E o homem nunca mais apareceu. O segundo caso, foi um pouco como este, mas um bocado diferente: apanhou a mais nova das cunhadas com um figuraço que andava por ali já há um tempo. Ele via e esperava pela ocasião. Depois de confirmado, tirou-lhe o filho que era dele e pô-la na rua. Para que vissem e tomassem nota: “Quem lhe der de comer, vai com ela”. Ali esteve, encolhidinha e coitada - três dias e três noites a chorar, todos passando ao largo (que o que ele dizia era para se cumprir) até que acabou por desistir e ir à vida. O tipo, o namorado ou quê, se vocês querem saber, ninguém mais lhe pôs a vista em cima:  fugiu? Foi morto? Só Deus sabe. O Avô Salustiano também não pode afirmar nada - não sabia de ter visto, mas calculava, pelo que teria mandado.

​

Em filhos foi afortunado. Na vida teve os seus percalços: o advento da República (1910) foi uma satisfação para todos os “filhos da terra” que se transformou em desgraça miudinha com a vinda do Alto Comissário que chegou e montou uma máquina colonial como deve de ser. Agora quem mandava nisto, só branco vindo da metrópole. Nem os de cá.

​

A pouco e pouco, avô Salustiano, foi ficando pobre - vendeu casas, vendeu fazendas, vendeu isto e aquilo, mas nunca chegou a ficar na miséria. Já tinha anos que sobravam e dinheiro bastante para viver sem problemas. Tinha os filhos arrumados, todos com o seu ofício e as suas primeiras letras, que era coisa rara no tempo. De tudo o que tinha, faltava-lhe uma coisa para morrer descansado: juntar uma vez na vida toda a sua gente e tirar com eles o seu primeiro retrato. Cada Salustiano saberia pela vida fora quem era e donde viera.

​

Andou três anos a preparar a festa. A escrever cartas com ajuda a Mamã-Grande que sendo mais velha, estava mais poupada das vistas. Aqui, fazemos uma explicação: Mamã-Grande sabia ler e escrever e aprendera sozinha. Foi assim:

​

Um dia, farta de bordados, sempre o mesmo ponto, sempre a mesma coisa, timidamente disse ao Avô Salustiano que queria aprender a escrever o seu nome. O velho ponderou que isto há viver e morrer e não vá ela, em sendo viúva, assinar de cruz e vêm-lhe os meirinhos, juizes e outros ladrões e tomam-lhe tudo. Depois, um dia destes, a gente tem de acabar com esta mancebia de preto gentio e casar como deve. Não é bonito uma senhora não saber assinar, muito embora na cidade, poucas o soubessem fazer. Uma pessoa que saiba assinar, mesmo não sabendo ler, sempre impõe um outro respeito...

​

Três dias depois mandou colocar junto à janela uma escrevaninha, daquelas de fechar e abrir com a sua chavinha (mais do que ninguém sabia ele, que a escrita era uma coisa íntima, e quase santa) quatro lápis de carvão, um lápis de tinta, um tinteiro e quatro canetas de aparo a saber: ponta fina, ponta média, ponta grossa e aquele aparo cortado que dava para Salustiano fazer as letras com voltas grossas. Chegou arrumou o móvel, mandou os rapazes embora e disse entregando-lhe uma tabuínha estreita com uma coisa escrita: “Este é o seu nome, minha Senhora. Está aqui: Angelina Sirim-Salustiano”. Agora comece a trabalhar. E ela começou. Todos os dias à mesma hora, limpava o pó da escrivaninha, de cima abaixo como se fosse um Menino-Jesus e começava  laboriosamente a copiar. Até imitar com perfeição o desenho do seu nome. Depois atreveu-se a pegar, muito a medo, nos jornais do seu homem. Copiava. Aí, as letras que desenhava eram diferentes - aprenderia depois que umas eram impressas e as do seu nome, manuscritas. O Avô Salustiano viu, percebeu a confusão, e passou uma tarde a desenhar-lhe um alfabeto impresso com o manuscrito por baixo. Ela apurou-se no estudo. O marido, passava e pensava consigo: “Mulher ocupada é mulher feliz”. Assim fomos por um ano ou mais. Um dia, D. Angelina Sirim-Salustiano, chegou-se ao marido e de lágrima nos olhos, confessou uma coisa que ela não sabia bem se era ou não era pecado:

​

- Senhor meu marido: ... parece que eu sei ler.

​

- Sabe ler, como? Como é que pode saber ler? Quem lhe ensinou? Ora leia aqui.

​

E apresentou-lhe o jornal que tinha trazido de fora. Ela começou a medo e depois foi pelas linhas numa velocidade que até a ele custava  seguir. Pela primeira vez o meu avô ficou gago, sem perceber nada, o mundo estava ao contrário. Houvera um milagre em sua casa. Deu um berro para o quintal. Trouxeram-lhe um marufo que refrescava na cacimba, mas ele pediu vinho. Uma coisa desta precisa de muito álcool. Bebeu três bons copos num fôlego. Ficou tonto. Virou-se para D. Angelina, sua esposa que, com aqueles olhos redondos e grandes, chorava silenciosa e copiosamente a sentença pelo crime que praticara e disse:

​

- Senhora D. Angelina - minha Senhora e Esposa, beijo-lhe as mãos. A Senhora é a mulher mais esperta desta colónia. E a mais santa também, porque conseguiu fazer um milagre nunca visto: aprendeu a ler sozinha. Não precisou de mestre. Eu próprio, Salustiano, precisei de mestre e muita porrada. À Senhora ninguém bateu para aprender, isto é que é uma coisa difícil de acreditar. Beijo as sua mãos, minha Senhora.

​

Ajoelhou. Beijou. E foi repousar a bebedeira e o desentendimento para a preguiceira da varanda. D. Angelina chorava: mares e oceanos de alegria - nunca na vida pensara que fosse possível ser feliz assim.

​

A partir daquele dia, Mamã-Grande abriu escola de família e nenhum filho homem ou mulher de Salustiano, saiu para a vida sem as primeira letras.

​

Mas estávamos a contar que aos noventa anos Salustiano reuniu toda a sua gente. Que andou três anos a intimar toda a família. Que alugou quatro quintais vizinhos para fazer as comidas. Quintal dele era só para reunir. O pessoal dormia num grande terreno no Bungo que lhe sobrara do tempo das caravanas. Vinham de madrugada, iam à noite. Quando se pilhavam fora da cidade branca, cantavam. Era um vozerio imenso, desencontrado, mas contente. D. Angélica, quase ao cem anos ainda conhecia a todos pelo nome. Um orgulho para o velho. 

​

Estava então cada filho e sua família sentado em seu canto: o pai numa cadeira, a mulher num banco gentio; se era filha, sentava-se ela na cadeira e o genro no banco. Os filhos e os filhos dos filhos que eram os netos todos à volta nas mesmas esteiras.

​

No topo do quintal Salustiano e D. Angélica em cadeira de espaldar  (como a dos bispos) e, em cadeiras normais, as mães sobrantes, das quais doze já tinham falecido. Vinham os filhos, com a sua gente em fila, pediam a benção, à mãe verdadeira, às tias, subiam depois até à Mamã-Grande que segredava para o marido o nome do filho em presença. Assim, depois de muitos anos, Salustiano chamou sem engano cada um dos seus filhos, abençoou os seus trezentos e muitos netos, conheceu quase todos os seus bisnetos e procurou (e encontrou, diga-se ) parecenças nos seus vinte e quatro trinetos. Fez as contas e somou quatrocentos e trinta e oito pessoas saídos de si. Tomou então a palavra e falou:

​

- Primeiro rezemos pelos nossas mães, nossos filhos e netos que Deus já chamou, mas foram contados, porque quem morre, mesmo morrendo continua família. 

​

Rezaram os que sabiam rezar. Fingiram os que não sabiam. Que nisto de religião Salustiano nunca fora muito de se preocupar. Ia até ao baptismo e pronto.

​

- Agora um aviso: os meus netos e bisnetos que não têm os filhos registados no meu livro, vêm amanhã para escrever os nomes. Mamã-Grande estará à espera.

​

Olhou, orgulhoso para aquela pequena multidão - tudo seu. Tudo sangue seu. Tudo gente sua.

- Quero dizer: eu já estou velho, não duro muito.(protestos) Já acabei e quis fazer esta despedida. Dinheiro não tenho para deixar. Se tivesse deitava fora para vocês não andar à pancada uns com os outros.(risos) Estou a vos falar: família nunca se bate. Eu amaldiçoo o meu filho, o meu neto, o meu bisneto, trineto ou pantaraneto que bata no seu irmão do mesmo meu sangue. (murmúrios de assentimento) Deixei-vos a vida, com a Graça de Deus. Esta casa e este quintal depois da minha morte é da Mamã-Gande e depois da morte dela das manas, até à última. Quando os velhos acabarem, tudo isto e o terreno do Bungo passa para a Câmara (já assinei os papéis) e eles farão aqui o Jardim Sirim Salustiano para que os netos venham passear no quintal da minha casa.

​

A cerimónia terminou com muitas palmas, poeira, algazarra e D. Angelina a chorar, copiosamente nos joelhos do marido.

​

O Avô Salustiano morreu em paz, três anos depois, enquanto D. Angelina (que não durou muito mais) lhe recitava os nomes do livro da família. Aguentou até ao último trineto e morreu. Simplesmente e assim. As manas foram, pouco depois retiradas para uma boa casa. A Câmara precisava construir ali, uma larga avenida que o povo começou a chamar Rua da Mamã-Grande. Assim durante anos. Depois, morreram os velhos, esqueceram-se os novos, espalharam-se os Salustianos por esse mundo fora (os tempos também eram outros) e um Presidente da Câmara colocou uma lápide e a rua passou a chamar-se -Avenida Dr. Hemengardo Varela Mendonça de Carvalho e Costa  Mendes de Castro e Silva.

​

Quem fora o dito senhor, ninguém sabia muito bem. Mas todos se lembravam da brava discussão que houvera, não só na Câmara como nos jornais da época, por causa das vírgulas. 

​

Uns, que à frente de alguns nomes deveria ter, por causa do fôlego, uma vírgula. Assim e deste modo: Hemengardo Varela Mendonça (virgula) de Carvalho e Costa (virgula) Mendes de Castro e Silva (pela lógica das virgulas: ponto final). 

​

Outros que não: nomes são nomes e não levam vírgulas. Vinham os terceiros: escrevamos só o primeiro e o último nome: Dr. Hemengardo da Silva. É pobre. Não diz nada da personalidade do grande homem que ele era, afirmou o Presidente, que possivelmente também não sabia quem o homem fora. E continuou na sua belíssima voz talhada para discursos: O nome é um património inalienável. É, digamos assim, uma propriedade pessoal, a que todos têm direito sem cortes nem alterações (falava com o gosto: punho direito fechado, pontuando palavra por palavra, o verbo burilado). É um vínculo secular de sangue. Mas...e os reis? Têm mais de vinte nomes e são conhecidos na história só por um, no máximo dois: D. Manuel, D. João, D.Afonso Henriques...

​

S. Excelência pigarreou (podia ser atrapalhação, mas não era) e disse serenamente: “Os reis não são para aqui chamados. Estamos numa República, meus senhores.” E ponto final, que é como quem diz: ficou assim mesmo - o nome completo, em letras miudinhas para caber na placa. 

 

Logo depois da inauguração, com a pompa e circunstância que lhe era devida, a rua passou a ser conhecida por Rua da Respiração. Os miúdos da escola tinham inventado um jogo e era assim: tomar fôlego e ver quantos nomes seriam capazes de dizer de uma só vez.

​

Com duas voltas e meia, o recorde estava nos pulmões de um tal Francisco João Sirim-Salustiano, tetraneto que o meu avô Salustiano não tivera tempo de mandar apontar no seu livro de família. 

MESA DO PEQUENO-ALMOÇO

Crónicas

Canal da Tarde

Mesa do pequeno almoço

O meu cunhado Rui Pereira que é pessoa conhecedora dos dias, das noites e das madrugadas de Luanda, deixava sempre o aviso:

 

- Às quatro da manhã, à saída de uma boate, qualquer mulher tem dezoito anos.

 

Porém, e como vocês saberão, a experiência de cada um, não dá experiência a ninguém e não é com os conselhos dos outros que se abre o caminho dos olhos de quem quer que seja. Não fora assim, diz-se, os conselhos não se davam – vendiam-se.

 

E foi que um dia o Felisberto, desapareceu às quatro da manhã, como cumpria, para aparecer aos amigos quase às onze daquele mesmo dia. O homem estava tonto de satisfação. Descobrira a América. Cristovão Colombo nunca estivera tão perto das Índias Ocidentais.

 

- Uma noite que só vos digo ! Uma verdadeira noite de amor. E vejam só...

 

Suspendia a palavra. Criava inveja. E rematava para admiração de todos:

 

- De manhã, quando acordei, tinha este bilhete na mesa de cabeceira...

 

E o bilhete mostrava-se: letra linda, letra redonda, letra calma e firme de quem tem o coração lavado e a consciência sem peso.

 

“ Amor: O prazer desta noite foi puro demais para que possa ser vendido ou comprado. Não me desiludas, tu que soubeste tão bem falar ao meu coração. Utiliza-te do apartamento à vontade. Deixo-te a mesa do pequeno almoço posta. Bom Apetite! Espero que gostes...”

 

E gostou, se gostou!...

 

Um bife, com dois ovos estrelados tudo bem embrulhado em papel de prata para não arrefecer; pão de forma cortado às fatias que ele ia colocando na torradeira e barrando com manteiga, aos montes, como gostava; Fiambre, salame, lascas de presunto e sei lá mais quê... Sumos de quantas qualidades havia (ele preferiu ir à geleira descobrir um “Grão Vasco” tinto). Fruta: maçã, mamão, abacate e ele, já enfastiado depenicou dois bagos de uva; Café da garrafa termus – quente; Leite, noutra garrafa – quentíssimo. Acendeu um cigarro e ficou a jiboiar até que saiu.

 

- E ela? Quem é ela, afinal ?

 

Ele, a fazer-se de caro, a guardar segredo atrás daquele sorriso satisfeito.

 

- Depois digo.

 

E os amigos ofendidos:

 

- Depois quando? Não tens confiança na gente?

 

E ele na sua:

 

- Não é falta de confiança. É que verdadeiramente não sei muito bem quem ela é. Sei que é linda. Sei que é uma maravilha como mulher. E como ela também gostou de estar comigo, há-de aparecer por aí, com toda a certeza...

 

E apareceu. Indiscutivelmente ela: as varizes eram um mapa de riscos negro e encaroçados, mais grossos que dedos. Os peitos, ripados eram só uma sugestão para não parecer um homem. A voz, forçadamente doce, não disfarçava o azedume da alma e o cheiro intenso do fumo e do álcool...

 

- Gostou do pequeno almoço amor ? perguntou ela num beijo de mel.

 

Levantamo-nos. Ele pregado à cadeira – frio, pasmado, sem guarda chuva que lhe aparasse aquele dilúvio de beijos. E o Rui Pereira a comentar ao lado:

 

- Eu avisei: às quatro da manhã, à saída de uma boate, todas as mulheres têm vinte anos.

 

- Desculpa, mas tu dizias dezoito.

 

- Pois é ! Mas esta merece bem os dois anos de exagero

LIBERDADE DE IMPRENSA

Crónicas

Canal da Tarde

Liberdade de imprensa

Velha, de muitos anos, a escada do “Jornal” tremeu debaixo dos pés. O homem subiu lentamente, apoiando–se ao corrimão. Foi ao guiché ao cimo das escadas pedir as informações que já conhecia. Sem dizer ao que ia, seria impedido pela segurança: “Quer ir aonde?” Vou à publicidade. “Primeiro precisa tirar informações. Não é só andar assim à toa.” Mas eu estive aqui ontem. Sei bem onde é... À porta, outro segurança tinha–lhe perguntado como sempre: “Vai aonde, fazer o quê, anúncio é de quem, deixa bilhete de identidade...A menina da recepção – essa – apontou com displicência e desinteresse como se estivesse a fazer um favor:

​

- ...naquela porta.

​

Partiu para aquela porta. Bateu. Entrou  sem esperar licença (no dia anterior tinha estado ali, educadamente, batendo e rebatendo uma boa meia hora) até que a menina lhe gritou:

​

- Ó senhor, por amor de Deus – deixe de bater e entre.

​

Pois então, agora nem bateu – entrou. Não havia qualquer balcão que o separasse do funcionário. Entrava–se e ficava–se de frente para a secretária onde se sentava um jovem. Cadeira para visitas, clientes, ou coisa assim, não havia. Só papéis: montes e montanhas de jornais espalhados: estantes de jornais, chão de jornais, paredes encostadas a jornais e, no meio de tudo, numa sobra pequenina de espaço, o jovem, o funcionário, um rapazola de olhos mortiços e sonolentos. Feito de propósito para o lugar. Daqui a trinta anos estará ali, ligeiramente mais branco de cabelo, mas como nunca se tivesse levantado do lugar.

 

-Bom dia. Diga por favor...

​

Pousou o jornal em cima da secretária e disse:

​

- Ontem vim pôr um anúncio, mas não saiu.

​

- Não saiu como?

​

- Não saindo, pura e simplesmente.

​

Falou-lhe assim, em letras grossas e maiúsculas para demonstrar a sua indignação. O homem da secretária deu um pulo.

​

-Espere! como se se fizesse uma luz no túnel escuro e fechado das suas lembranças... Espere! O senhor é que veio cá pôr este anúncio...

​

E procurou no meio da papelada até encontrar – papel, fotografia e tudo...

​

Entregou com um sorriso bom de quem pede desculpa, mas não há nada a fazer. O cliente falou, ainda meio zangado:

​

- Sim senhor. Fui eu mesmo que vim pôr esse anúncio. Paguei, vocês receberam e não publicaram...

​

O funcionário, simpático e contemporizador:

​

- Veja: não publicámos, porque não podemos publicar. Quer dizer: não se podem publicar anúncios desse tipo.

​

- Essa agora! Não se podem publicar - admirou–se o homem. E ao abrigo de que Lei é que não se podem publicar?

​

O funcionário engasgou. De leis não entendia. Estava alí para obedecer à direcção e cobrar aos clientes: tantas linhas é tanto, meia página é xis, um quarto é assim ou assado...

​

- Lei? Não sei. Mas a gente vai devolver–lhe o dinheiro do anúncio. O Senhor compreende...

​

O senhor parece que não compreendia e começava a irritar–se. Estava verdadeiramente pelos cabelos. Isto, só mesmo em Angola é que acontece.

​

- Não. Não quero dinheiro nenhum. Quero é saber a lei que proíbe a publicação do meu anúncio.

​

E a voz elevava–se irritada. De baixo, o segurança espreitou, a ver como estavam os ânimos. As meninas da recepção bichanavam apreensões.

​

- Isto é... (e engasgou–se e mudou de discurso) numa altura em que em qualqur parte do mundo, os jornais aceitam até publicidade de prostitutas: “ Sou loira. Tenho dezoito anos e etc...” aqui em Angola recusa–se um anúncio. E porquê? Diga–me porquê... (e respondia) porque em Angola, qualquer idiota metido a director de um jornal se sente no direito de fabricar as suas próprias leis para atentar contra a livre expressão do cidadão.

​

E olhando de frente o funcionário:

​

- O senhor diga–me: eu venho aqui pôr um anúncio de que fulano faleceu. Posso ou não posso? 

​

E o outro, atarantado e a medo:

​

- Pode, sim senhor.

 

E ele, vitorioso e incisivo:

​

–   Preciso trazer o morto?

​

–   Não senhor, não precisa.

​

-   Preciso trazer certidão de óbito?

​

-   Não senhor. Não precisa.

​

E ele calminho, como quem agarra um falsário na meia volta de uma mentira.

​

-Então diga-me: como é que você sabe, sem o morto, sem o atestado de óbito que o homem morreu mesmo?

​

E o rapaz confuso, idiota de todo:

​

 - Mas qual homem?

​

- O tal fulano que lhe vieram trazer o nome para dizer que morreu.

​

- Mas afinal, de qual pessoa que morreu está o senhor a falar?

​

- Falo de todos os nomes dos que morreram desde o princípio do mundo e vêm pôr aqui o seu nome no jornal a dizer que morreram.

​

- Mas o Senhor não veio pôr nome nenhum.

​

- Vim, sim senhor. Está aqui (e bateu com força nos papéis, quase que  os enfiando pelos olhos do outro) está aqui: Álvaro Manuel Duarte (que por acaso é o meu nome) comerciante (e há mais de quarenta anos. Já no tempo do colono eu era um senhor , comunica aos seus amigos, clientes e fornecedores que ainda não faleceu.

​

O funcionário respirou fundo: agora já percebia o engano e podia dar uma justificação.

​

- Parece que o problema é do local aonde o senhor mandou pôr o anúncio. O Senhor lembra-se que o mandou pôr na necrologia.

​

E o outro, mais sossegado. Afinal sempre recebera uma explicação. Era tudo uma questão de mal entendido e a conversar é que a gente se entende.

​

- Na necrologia, mas sem cruz.

​

- Pois é: mas na necrologia não pode.

​

E o homem admirado:

​

- E não pode, porquê?

​

- Porque alí é lugar de pôr só os mortos.   

​

- E eu já lhe disse: como é que você sabe que esses estão mortos, se não apresentaram  nem o cadáver, nem a certidão de óbito?

​

- Bem, calculo: se vêm aqui dizer que morreu, é porque morreu mesmo.

​

     - Se uns dizem que faleceram, eu estou no meu direito de dizer que não faleci. E qual é o melhor sítio para dizer que estou vivo, senão naquele aonde, onde todos os dias,  as pessoas vão ver o nome e as fotografias dos que faleceram? Vocês, por acaso, têm no vosso jornal uma secção para os vivos – uma viviologia?  O jornal é feito para os vivos ou para os mortos? Serão os mortos que compram o jornal e lhe pagam o ordenado? Qual é o caso desta discriminação? Ou é só assim: censura pidesca?

INDEFERIMENTO

Crónicas

Canal da Tarde

Indeferimento

O homem agitava–se desorientado. Cheio de uma razão que lhe enchia os olhos  e atrapalhava as palavras.

 

–  Não é um miúdo qualquer de ministro que me chateia. Eu mesmo, com ele não falo mais.Vou logo direitamente no pai dele. Pai não é governo de ministro, mas ainda é pai. Lhe conheço há mais de sessenta anos. Inda mesmo quando a gente era candengue e andava aí nas ruas, é que a gente se conhece.

 

Fazendo uma pausa, com uma recordação a bailar–lhe nos olhos, qualquer coisa que devia ser dita e era importante:

 

–   Porque, mesmo do pai dele, era o seu mais–velho. Andava lá no nosso grupo, mas só como caxico.:vai buscar isto, vai comprar aquilo. Se comia com a gente, comia no fim de todos e eram só as sobras. Mesmo o filho dele, o ministro...

 

E repisava, como gestos e pausas cada vez mais solenes.

 

–    Sim, o ministro. Agora até parece uma pessoa, mas nos tempos andava como? Era cheio de ranhos que ainda mesmo hoje os perfumes desconseguem de lhe tirar os cheiros catinguentos das ranhetas deles. Era a ele que a gente mandava: “Vai an loja do Sô Manuel e traz isto”. Se não tinhas dinheiro em casa, quem é que falava? Sim, quem é que falava?...

 

E fazia uma pausa, esperando a resposta qe ninguém sabia, mas todos adivinhavam.

 

–  Que é que falava: “ Miúdo ( miúdo era o ministro, está a ver?) diz para mandar um garrafão de vinho (e era um garrafão de capacete, não era vinho de preto qualquer) que eu amnhão passo por lá e pago.Quem é que fiava an loja? (perguntava e respondia:) EU. Quem tinha o respeito? ( e batia, orgulhoso no peito:)EU mesmo, o próprio, sozinho.Quem ia fazer os reacados, as caxicagens catinguentas?

 

E respondia ele, assim como quem está a falar num comício:

 

–  O ministro. Esse miúdo burro e com feridas do quê an cabeça. An escola custou aprender. Só com porrada é que lhe abriram a cabeça. Agora é doutor, como é isso então?

 

E pausa. E olhos injectados e furibundos. E a nossa curiosidade desperta, satisfeita, contente, para ouvir falar mal de gente grande.

 

–  E então, esse gajo, esse garoto que lhe conheci aqui mesmo nos musseques ( eu mesmo,nesse tempo já era um senhor e vivia an cidade. Não era um preto qualquer assim. Morava no sítio dos brancos. Meu vizinho era branco...

 

E perguntava, como se todos soubessem a resposta:

 

 

– D. Maria Furtado d’Almeida era quê? (e respondia:) Era branca. Dona Fracisquinha da Cunha Pousada, era quê? ( e voltava a responder:) cabrita como branca e professora...

 

Deu conta que se tinha desviado da conversa e retomou o rumo, não sem antes limpar o suor que lhe escorria pela testa com um lenço impecavelmente branco.

 

– ... esse ministro que lhe conheci miúdo... então pensei: tenho as minhas dificuldades, o rapaz pode–me ajudar e mandei–lhe um requerimento e tal e quê que sou eu, fulano, que se lemra lhe conheci com o teu pai e a tua mãe, no tempo ainda da avó Miquelina, sua tia da parte de mãe, as duas infelizmente já an idade de falecidas. Estou nas minhas dificuldades, pelo que agradeço a V.EXª me mandes distribuir um IACE para eu pôr an candonga e governar a minha vida. Até aqui, tudo bem.

 

Assoou–se, atroando a rua com o sopro das suas narinas. Dobrou cautelosamente o lenço para continuar:

 

–  ... pois até aqui tudo bem. Porque vizinho ( e a gente era quase vizinho – ele no musseque, eu na cidade) vizinho é mas família que irmão. Vizinho mora com as nossa desgraças e o nosso irmõ está longe. Quem lhe tirou o pai da cadeia da administração – foi o irmão tio dele, ou fui eu? Se eu preciso agora quem vai–me pê curativo nas feridas das minhas dificuldades é esse miúdo mesmo. E sabem o que ele fez?

 

E espalmava a mão no peito. Batia com força a mão no peito, os olhos quse a lagrimar, vermelhos e cheio de raiva.

 

–  ...me mandou chamar: “ O senhor ministro tal e quê, deseja falr consigo Qinta feira às onze horas. Me vesti de fato e fui. Recebido com o Ministro estavam mais dois camaradas cheio de gravatas e camisa daquelas antigas de botão de punho e tudo. O Ministro calado a olhar para mim.

 

– “Foi o Senhor que fez este requerimento?” Perguntou um desses tal. Eu respondi, com a minha educação: “Com a graça de Deus, fui eu mesmo.Sei ler. Sei escrever. Aprendi an Missão do Késsua e no José Maria Relvas.” Vai o outro e fala: “ O Senhor tem consciência do que pediu a Sua Excelência?” E eua agora já a responder: “ a Sua Excelência eu não pedi nada. Pedi sim, está aí muito bem escrito, a Vossa Excelência”...

 

E o outro, o tal camarada, parvo e admirado:

 

– “ A mim?” e eu an resposta: “Não sei se o camarada é também Vossa Excelência que me pode ajudar. Aqui  an minha idade toda a ajuda nunca chega. Se Vossa Excelência é excelência como o excelentíssimo Senhor Ministro, muito obrigado. Pode–me dar a chave do IACE que eu trouxe já o motorista e o trânsito anda muito lixado nestas hora do meio dia.”  

 

Estávamos assim muito bem nesta conversa ( muito educados, porque tu mesmo se tratas o homem com tu, com gente estranha é sempre Excelentísmo. Porque se você não respeita a sua família, quem é quevai respeitar?... então o sacana do ministro que estava calado e muito calado, falou: “ Vamos acabar com isto: o velho não está a perceber nada.” E depois virou–se para mim:  “Chamei–o cá, com a consideração de lhe conhecer, a dizer que o seu requerimento foi indeferido. Se está com dificuldades posso–lhe adiantar um dinheirito...” E eu que não estva mesmo a perceber, sem pegar no dinheiro que ele me estava a dar... “Indeferido é como é?” E o outro, o camarada armado em excelência: “Indeferido é não.” E eu, virado para o ministro: “ E como é que você está a dizer não, a mim que sou teu mais–velho, e está dizer sim a todo o candongueiro ladrão que anda aí nos carros a roubar o povo?” E ele, mais manso, a falar com o seu jeito de ministro: “ Tome o dinheiro ti Alberto. Não é muito mas sempre faz jeito...”

 

Parei. O dinheiro estava–me a cumprimentar – era um motinho bonito, mas eu, pessoa de respeito que toda a gente me conhece, lhe falei grosso:

 

–  Como é que você, filho de teu pai bêbado, que lhe tirei duas vezes da cadeia do colono, me está a dizer que é não, quando essa que lhe chamam secretária, você deu um carro que não é IACE de trabalho, mas marca de fazer serviço do passeio?

 

Vocês acreditam o que é que o gajo fez? Chamou os polícias da segurança e me mandou pôr fora. Ainda ouvi ele dizer, “não lhe façam mal. Não batam no velho.” Sacana de merda que lhe conheci assim e fez o gesto (braço estendido na horizontal e mão, com os cinco dedos unidos virados para cima) mostrava um desentendimento completo, como se o menino tivesse crescido de repente e, filho de quem era, lhe estivesse a dizer que o pai era outro.

 

Me agarraram, mas mesmo assim lhe gritei:

 

–  Limpa o rabo nesse teu dinheiro sujo. Eu não sou pobre de pedir esmola e tu, não esquece, te queixo no Presidente, te queixo no teu pai, conheço os meus direitos e sei: com esta idade que eu tenho eu não posso ser indeferido. Nem ministro me pode indeferir.

FERIDO DE GUERRA

Crónicas

Canal da Tarde

Ferido de guerra

Na cidade, no tempo de uma das outras guerras, levantava-se de quando em vez a enorme confusão de um ataque. Não é preciso que eu diga que em matéria de guerras houve sempre "outras" guerras. Antigamente, ainda a gente as contava e tínhamos: a 1ª Guerra de Libertação, a 2ª Guerra de Libertação e, a partir daí, talvez porque tivéssemos medo de contar: a Terceira, e depois desta a Quarta e a Quinta, passámos a não lhes chamar nada. Por isto, este caso aconteceu numa das outras guerras.

​

Temos então, que caiu de madrugada, sobre a cidade, um tremendo de um ataque. Claro que era habitual, mas este saído quase do lado do quartel dos Cubanos que entravam calmamente em prevenção e só disparavam se fossem directamente atacados. 

​

O inimigo que não era burro, andava diante dos seus olhos a bailar de um lado para o outro e as nossas tropas, com medo de molestar "nuestro hermanos" faziam fogo com jeito. Vocês já viram uma guerra, onde se faz fogo com jeito, com delicadeza, diríamos: com educação?

​

Pois era esta a guerra.

​

No Largo Comandante Kussi, quando rebentava confusão, os velhos - levantavam-se, vestiam-se rápido (podia ser preciso estar preparado para fugir) e cada qual reagia da sua maneira.

​

Ela, de joelhos, no meio do quarto, rezava o pouco que ainda sabia. Ele (que era de uma educação irrepreensível) abria a janela e vociferava uma ladainha de asneiras: 

​

 - Filhos da Puta.

​

Assim mesmo com letra grande e soletrada. E a mulher, de joelhos, a afugentar os tiros como nos tempos idos, a avó afugentava as trovoadas:

 

- "Santa Bárbara, Bendita que no céu está escrita, com raminhos de água benta, vê se nos livra desta tormenta. Já os galos cantam, já os anjos se alevantam, já Nosso Senhor está na Cruz, para sempre amem Jesus."

 

E ele, muito direito, como que em sentido, por detrás da janela aberta:

​

- Ó mulher, deixa-me de rezar pelos galos. Não lhes fales à mão. 

​

O marido era ateu, mas tinha lá as suas superstições e garganta para a bravar sempre mais alto:

​

- Filhos da Puta.

​

E a mulher, cabeça quase a bater no chão (às vezes é preciso bater com a cabeça, para nos lembrarmos de um nome qualquer, agora esquecido: nome de gente, nome de cidade ou, neste caso, palavras da oração que o medo fazia esquecer):

 

- "Se eu dormir, embalai-me; se eu morrer acompanhai-me com as onze mil virgens e a Santíssima Trindade, meu corpo não seja triste, minha alma perdida. Jesus Cristo morreu por ela e o filho da Virgem Maria que nos guarde por esta noite e amanhã por todo o dia. Padre  Nosso e Avé Maria ".

 

E mais um rebentamento aqui, e mais três ou quatro lá do outro lado e o triturar contínuo das metralhadoras e os tiros bem contados da Aká: tá, tá, tá, são três tiros; tá-ta, tá-tá, tá, cinco tiros bem medidos para não esbanjar o carregador e ele aos berros de desabafo:

​

-       Só faltava que caísse uma aqui no largo. 

​

Dizia sempre isto, como que para esconjurar o perigo. Assim do tipo: se eu falo, não acontece. E gritava:

​

- Filhos da Puta.

​

E a mulher, cabeça perdida, à procura das orações certas. A última que rezara não era própria para a ocasião. Deus lhe perdoe, mas era a oração para antes de deitar, tal como esta outra que lhe vinha agora à ideia: 

​

" Nesta cama me deitei, na sepultura dos vivos; deitam-se vivos e amanhecem falecidos; Se eu  algum destes for, entrego a minha alma a Nosso Senhor. Se a morte me vier buscar e não lhe puder falar, falai-lhe a Virgem Maria. Padre Nosso e Avé Maria". 

​

Devia haver orações próprias para estas trovoadas de guerra, para estes medos e ansiedades. E os cubanos estão a fazer quê, que nunca mais se decidem a entrar?

​

  - Filhos da Puta

​

-"PadreNosso Pequenino quando Deus era menino: Jesus Cristo, meu padrinho, dai-me a vossa mão direita para fazer uma cruz bem feita...

​

E aqui faltou-lhe a memória. Saltou por cima e continuou com pressa, não fosse Nosso Senhor dar conta da sua falha.

​

-... nunca Deus comigo se encontre, nem de noite, nem à hora do meio  dia. Já os galos cantam, já os anjos se levantam, já o Nosso Senhor desce da Cruz, para sempre, amem, Jesus.

​

E o marido irritado, com a repetição daquela da lenga-lenga:

​

-  Ó mulher, já disse: deixa de rezar aos galos. Não me faltava mais nada. 

​

E rebentava na sua:

​

- Filhos da Puta

​

E ela, sem o ouvir, só com aquela na cabeça: isto já está a durar muito. Mesmo sem olhar para o relógio conseguia, sem engano, calcular o tempo: meia hora. Como se o medo lhe tivesse feito engolir um relógio.

​

- "Padre  Nosso Maior: Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, quando os Anjos vão para o céu todos em procissão, S. Pedro leva as chaves, S. João leva o pendão, estão os tormentos armados, pés e mãos de Nosso Senhor Jesus Cristo, com a lança encostados, todo o sangue que caiu naquele cálice consagrado neste mundo".

​

De repente e sem contar, o obus veio e acertou mesmo no meio do largo. Um tremendíssimo estrondo. Uma aflição de estarrecer. Os ouvidos zonzos, o cérebro em tremidos, a respiração opressa.

​

O homem caiu empurrado para trás e sentiu, vagamente e lá muito ao fundo, um estralhaçar de vidros. Nem olhou para si nem para a mulher. Estupidamente pensou: "Agora é que vão ser elas. Com o frio que está e sem vidros nas janelas, era só o que faltava". Levantou-se tonto, sentindo a mulher meia taralhoca a repetir uma oração:

​

"Treze raios tem o sol, treze raios tem a lua, rebenta p’raí Diabo, qu’ esta alma não é tua."

​

 E repetia, e acrescentava, agora parece que desperta pelo susto, aquele oração de afastar as trovoadas que lhe falhara há pouco: 

​

"Santo António se levantou, seus sapatinhos calçou, Nosso Senhor lhe perguntou: António aonde vais? Vou espalhar a trovoada. Espalha-a bem espalhada, para onde não haja pão nem vinho, nem flor de rosmaninho, nem bafo d' alma cristã. Já os galos cantam, já os anjos se levantam. Já Nosso Senhor está na cruz, para sempre amen Jesus"

​

- Cala-te com os galos ou vai prá a Jamba.

​

Ia a terminar com o seus filhos de quê, quando viu um vulto que corria e se deitava na beira fumegante do buraco do obus. Infiltrado inimigo? pensou. Lembrou depois o que o vizinho lhe garantira tempos atrás que nunca caem dois obuses no mesmo buraco. Possivelmente, em ânsias de fugir à morte, vestira-se rapidamente pusera a calça, a camisa e os sapatos e viera procurar abrigo no meio do largo, deitado nos arredores do buraco onde o obus fumegava.

​

E a confusão, a pouco e pouco terminou. Já só se ouvia um ou outro tiro longe, assim como quem se despede até à próxima. De repente ele reparou que o vizinho coxeava. Do cimo da janela, o homem lançou o insulto:

​

- Filhos da Puta, lixaram o vizinho. Lixaram o camarada.

​

O camarada deve-se ter apercebido de que estava ferido. Apanhado não sei onde por um estilhaço de não sei quê, coxeava acentuadamente. O homem coxeava e cada vez mais. Não lhe doía nada, mas estava ferido. Assim como quando já a vida deixou de doer às portas do outro mundo. Deve ser da coluna, pensou ele. Agora que se pusera em pé, subia-lhe uma dor imensa pela perna direita. Nascia nos dedos dos pés e subia... E aos gritos da vítima acudiram todos os vizinhos. Havia até a lanterna do engenheiro que com a falta de pilhas, era só a dele, e servia para as necessidades do largo. 

​

Procuraram: estilhaço está onde? E não havia pinga de sangue. Discutiam os sábios: às vezes é só um furo. Tão pequenino que nem sangra. E o ferido, dos nervos, não parava de xinguilar coxeando, doendo-lhe a perna direita como lhe doía. Pode dizer-se que xinguilava a pé coxinho: “ Vou morrer. Vou morrer. Ai minha mulher que vou morrer...”

​

E foi assim que o milagre aconteceu: 

​

…na pressa de sair, decentemente vestido e calçado, conseguira o impossível: enfiar o pé direito num sapato de salto alto da mulher e o esquerdo num sapato seu. Por isso coxeava. E a verdade da guerra é esta: quem coxeia está ferido.

A MULHER

Crónicas

Canal da Tarde

A Mulher

Era realmente uma mulher estranha. As vizinhas falavam. Ainda nova, o homem lhe abandonara. Foi pra onde, ninguém mais lhe viu. Havia quem dissesse que estava em Portugal. Isto tudo, e só seis meses que estavam casados. Não deu tempo para lhe engravidar. Aconteceu  quê, ou não aconteceu quê? Nunca ninguém soube e ela também não disse.

​

Claro que a gente já sabe: culpa é só mesmo da mulher que não lhe soube agarrar, ou então, fez coisa que o marido nem pensou e fugiu logo... 

​

Era pessoa que não dava palavra que a gente conversasse, nem deixava que ninguém lhe adivinhasse a vida.

​

Aconteceu um dia que falaram que o marido tinha morrido lá nas terras do quê. Logo apareceu a família dele (irmãs, tias, sobrinhas, primos) a reclamarem a tradição das heranças, porque a casa é minha, a mobília de sala fica prá mana caçula, eu fico com o rádio - era o sobrinho mais velho que falava - a geleira eu é que levo.

​

Mas, casa assim mais despida nunca se tinha visto. Será que ela escondeu tudo no quarto? E a cunhada mais velha interrogava, assim como quem não quer a coisa:

​

- A cama que dorme com você, está no quarto? 

​

- Televisão. Você não tinhas televisão, mana?

​

E, ralhando, para ela ver como era culpada:

​

- Você, minha cunhada, nem está a viuvar no quarto, nem te vestiste de luto.

​

Entretanto, o tom das perguntas ia subindo, nesta sem-vergonhice da cobiça. Cada qual fazia o seu inventário e se distribuía tudo o que pensava existir. A mulher, parecia não entender o que eles falavam. Há gente que com o sofrimento fica assim: ouve, mas não escuta.  A cunhada resolveu acordar a mulher com uma explicação:

​

- Na nossa tradição é assim: quando uma pessoa morre a família do falecido é que fica com as coisas. Mesmo esta casa, você tem que sair.

​

A mulher, parece, continuava a não ouvir. 

​

E estava tudo nesta confusão quando entraram quatro matulões e começaram a empurrar a gente para fora. Tinham-se juntado os vizinhos: admirados, estarrecidos, nunca na vida tinham visto coisa assim. Ela levantara-se da cadeira e começara a enxotar:

​

- Xé! Xè! família do meu homem estou mesmo a lhes pôr na rua. 

​

Resmungantes e ameaçantes foram ainda mais depressa, quando viram que o sobrinho, o tal matulão que gritava “O rádio é meu” lhe varreram uma lambada e ele ficou logo a cuspir sangue, humilhação e areia. A mulher falava:

​

- Aqui não tem tradição. Tudo o que aqui está é mesmo meu. Não foi esse vosso parente preguiçoso que ganhou. Se ele morreu, se ele não morreu, a gente não sabe. Vocês é que lhe estão a querer enterrar ainda vivo. Se ele aparece, vai dormir na cama de quem, se vocês levaram?

​

Nunca ninguém tinha ouvido a mulher falar tanto. Tudo calado, até o sobrinho batido.

​

- Estou-vos avisar família do meu marido, quem leva uma só coisa roubada da minha casa, morre. E morre ainda hoje.

​

Aí ouviu-se um grito: um miúdo, primo ou quê que tinha palmado uma gasosa começou com espasmos a rolar pelo chão e a vomitar-se todo.

​

- Vou morrer, vou morrer - Aiué! vou morrer...

​

O coitado estava numa aflição doida. Dava pulos que parecia querer agarrar o céu. A sua própria mãe, com medo deste feitiço, ou atarantamento do caso, não se aproximava do miúdo Ela é que foi ter com ele.  Agarrou-o disse-lhe com carinho:

​

- Deixa só, meu sobrinho, você já não morre. Acabou tudo.

​

O miúdo parou, ainda com os olhos apavorados e ficou bem. As pessoas se admiraram e foi daí que uns começaram a dizer que ela era feiticeira, outros a procurá-la porque tinha “mãos santas” de curar. 

​

As dificuldades da vida fizeram muita gente pedir ajuda nesta mulher estranha. Nunca negava. Se era dinheiro, dava. Todos pagavam na hora, ou quando não podiam davam satisfação. Medo de uma praga dela, era muito, embora ninguém pudesse dizer que ela pragara este ou aquele. Se era parto, deixava tudo e ia. As crianças nasciam, parece passarinhos a voar para as mão dela. Mão Santas de Deus, que até mesmo os brancos, quando os doutores mesmo médicos já não sabiam o que fazer, lhe iam buscar. Chegava, punha as mão na barrigona da outra e a criança até parecia um avião a aterrar nas mãos dela. Se era doença trazia os remédios: chá, paus e outras coisas que ela sabia. O que ela não sabia é quando essa miúdas ainda de leite lhe vinham perguntar: se pode fazer isto, não faz mal lhe deixar fazer aquilo... e ela andava meses com o coração gelado de espanto: afinal?! se fazia isto e aquilo e até mais?!... Ela que não se entendia muito bem com essas coisas da cama, 

​

porque uma cama serve para o que serve de fazer filhos, sabia agora que, até fora da cama...

​

Atrás da sua banca de vender: cerveja, gasosa, coca-cola, e assim - a senhora estava na sua mudez. A olhar tudo, a ver tudo, a dar conta de tudo, mas parecendo que não reparava em nada. Nunca se perguntara: porque é que ele foi, porque é que ele não foi. Quem o fez ir, foi o destino. Lembrava-o às vezes e via-o tal como era, bonito,um corpo elegante, milímetro por milímetro sonhado e revivido. Não com a gula de quem quer ter homem. Gostava de olhar o que era seu. Não precisava tocar.

​

Espreitava-o quando ele, suando as suas bandidagens, se levantava com o sol e vinha cá fora apanhar o ar fresco da manhã, com uma caneca grande de alumínio. Tomava o seu chá, gole aqui, gole acolá, enquanto o sol subia e a brisa se aquecia no fogareiro do dia. Quando não tinha trabalho (ele gostava mesmo era da sua preguiça) sentava-se num banco-gentio a canivetar madeira. Fazia coisas que se fosse hoje, com esses estrangeiros todos, ganhava uma fortuna no artesanato. 

​

De viver era assim entre os dois:  mal falavam. Até no tempo do namoro: praticamente não diziam palavra - davam-se as mãos e ficavam horas e horas a verem-se. A diferença entre ver e olhar é esta: quem vê quer conhecer-se, quer saber-se, quem olha quer tão somente reparar. Depois de casados o mesmo: amanheciam calados com um bom-dia de educação pela manhã, e adormeciam monossilábicos, com um boa noite sem mais palavras. 

​

Família, a que existia, eram os vizinhos - porque vizinho que desprezas na sorte, é um irmão que te falta na desgraça. Nestes tempos, a família não é como antigamente - come-te em vida e empurra a morte a te fechar o olhos. Os vizinhos, não. Sabem que quando você morre, a ajuda acaba.

​

Se um dia ele viesse havia de lhe dizer coisas amargas da vergonha, da humilhação de mulher que o coração escondia por debaixo daquela máscara muda da sua cara. Ao menos lhe engravidasse. Andou a fazer o quê em cima dela vezes e vezes que parecia que só tinham casado para essa coisa...

​

Se um dia ele voltasse, até nem diria nada. Desabituada de falar custava-lhe tanto dizer o quê, pensar no quê. Falar, melhora o destino? Falar, muda a tua vida? Falar, faz o quê, alem das confusões que faz?

​

Se um dia ele  chegasse...

​

E um dia ele chegou. Vinte anos depois. Reconheceu-lhe a voz -descansada, profunda, voz grossa, mesmo de homem-HOMEM. Primeiro viu quem era pela voz, só depois de estar certa, retirara os olhos que mantinha baixos na quitanda que arrumava.

​

- Boa tarde - cumprimentou ele, como se a tivesse visto no dia atrasado - posso ficar, mesmo só aí no seu quintal? Amanhã, ou depois, arranjo sítio.

​

Vinha a falar um português afinado. Um português importante, de branco fino. Respondeu-lhe, naturalmente, como se ele nunca tivesse saído dali:

​

- Pode entrar. O quarto, você já sabe.

​

- Obrigado.

​

Na noite que se dormiram pela primeira vez depois de tanto tempo, ele ainda ensaiou uma aproximação tímida. Uma aproximação de dever. Mas o fogo já não morava ali. E ela disse:

​

- Amanhã, você vai dormir no outro quarto. O nosso tempo passou. Vamos ficar mesmo só assim.

​

E, cada qual no seu quarto, recomeçaram a vida. Ela, na quitanda vendendo coisas, e sabendo como lhe criticavam de meter um homem em casa...

​

- ‘tava com tanta falta assim que recebeu o homem que lhe abandonou faz vinte anos? Quando a gente falou: “ amiga com este, amiga com aquele, não é bom uma mulher ficar só assim sozinha, sem filho que lhe dê uma velhice, você disse não. Meu homem de Igreja, só tenho um. Agora - está aí agora - que já lhe passou o tempo de ter filhos é que você precisa de homem pra quê?”

​

Ele, por ali uns dias, à espera de emprego que nunca chegava, de canivete nas mãos, moldava figurinhas de madeira. Como antes, a brisa da manhã, se aquecia no fogareiro do Sol.

A LATA DE BISCOITOS

Crónicas

Canal da Tarde

A Lata de Biscoitos

Teria eu seis anos, um carrinho de madeira e três latas: lindas, redondas, cada qual com o seu desenho de flores e no meio da tampa um castelo. Na lata branca, minha mãe guardava bolacha Maria. Na azul, bolacha de água e sal, de que eu não gostava muito. Na terceira, que era assim entre encarnado vivo e cor-de-rosa, enchia-a de biscoitos farelentos e bons  que eu não me cansava de querer comer.

​

Das três latas que eram o maior tesouro da minha infância, a que primeiro morreu, acabadinha de velha foi a branca, a azul foi a seguir, não muito tempo depois, a encarnada, apesar destes anos todos, tem andado por aí (não posso afirmar se viva se morta) na memória dos meus dias.

​

Eu explico: um dia, ainda as três lata eram vivas, saudáveis e brilhantes, desapareceu, misteriosamente, a lata encarnada e rosa. Meu pai, morreu convencido de que teria sido eu que a escondera e naquela aflição de negar a asneira, me esquecera do lugar. Eu bem explicava. Bem chorava. Ainda para mais, durante quinze dias,  não houve mais lata nem biscoitos.

​

Depois, lá veio uma outra lata - até parece que mais bonita que aquela, cheia de biscoitos, alguns com cobertura de chocolate e tudo. Meu pai fez-me um sermão que é feio tirar as coisas sem ordem dos mais-velhos, e é interessante contar que eu, até hoje, nunca mais toquei num biscoito. Como os adultos têm sempre explicações para tudo, logo ele inventou que eu ficara de tal maneira enjoado por ter comido a lata inteira que agora não queria nem vê-los...

​

A Lata de biscoitos passara a ser receita para toda a gente com filhos da minha idade: “ Deixe-os comer, que eles de tanto comerem acabam por enjoar”. A Lata de biscoitos passara a ser a explicação científica de meu pai: “ As crianças muitas vezes não mentem. Acreditam no que a sua imaginação criou. Outras vezes, escondem o objecto que os levou a fazer alguma asneira e esquecem-no. Desaparece o objecto, desaparece a culpa. Olhe por exemplo: o meu filho escondeu uma lata de biscoitos e nunca mais soube aonde. A mente humana, principalmente a infantil, é um mundo fascinante.” Concluía ele, contente consigo próprio.

​

A Lata de biscoitos andou comigo toda a vida: porque não fui eu que a roubei, não fui eu que a escondi, não fui eu que lhe comi os biscoitos. É bem verdade que no dia do desaparecimento da Lata, não estava ninguém em casa senão eu. Não entrou ninguém em casa, pelo menos que eu visse. Minha mãe tinha ido visitar a minha tia que estava adoentada, ou se calhar nem estava, porque mais tarde vim a saber que tinha tido um filho, aliás uma filha que é a minha prima Isabelinha. E, como aprendi depois: gravidez, não é doença. Meu pai estava no seu serviço da loja, atrás do balcão, aviando os clientes, conferindo os materiais e passando Facturas que afinal eram só Notas de Remessa, porque quem passa Facturas é o Senhor Mário de Sousa, um mulato de olhos esbugalhados, aumentados pelas lentes dos óculos que é o guarda-livros e, apesar da cor (como se dizia) é uma pessoa de respeito e exemplo. 

 

Meu pai repetia, sempre que apanhava uma daquelas caixas de palitos de palitar os dentes, que tinha a Torre dos Clérigos desenhada: “ Olha - atrás daqui, está a escola onde hás-de estudar. A  Raúl Dória. Hás-de ser um guarda livros como o senhor Mário...”

​

E eu olhava, fixava bem a tal torre, para ver se ela me deixava ver o que estava por detrás dela. Como sabeis, os desenhos, bem ou mal feitos, não têm por detrás.

​

E eu que sim senhor, a ver-me já sentado, silencioso, a passar Facturas, a somar números, a fazer cartas. Também a desenhar num misterioso livro que só se escreve à noite. O Senhor Mário a chamar o chefe dos serventes: “Prepara o petromax”. Saía mais cedo. Voltava pouco depois de fecharem as portas. O Servente a postos. Tirava o casaco (ele nunca tirava o casaco, senão naquela ocasião) arregaçava as mangas e o petromax subia até ao gancho do teto. Ficava a balançar: dim, dlão, dim, dlão que parecia um sino, ou um daqueles bocado de carril de combóio, onde se batia para chamar os contratados. 

​

O Senhor Mário preparava as canetas de aparo (tinha umas quantas) afiava os lápis (também muitos) e ia lavar as mãos. Quer dizer as mãos e os braços até aos cotovelos. Enxugava-se bem, numa toalha limpa e branca e depois sentava-se. Experimentava a primeira caneta numa folha de papel e com as páginas do livro resguardadas por uma folha de mata-borrão começava a desenhar letras.

​

Cada palavra feita (vagarosa e deleitosamente feita) era seca com um mata-borrão (cuidadosamente e sem pressas). “ Está a escriturar os livros”, dizia quem passava, procurando não fazer barulho. Sabia-se: uma rasura, um borrão, uma pequena emenda e as Finanças recusaria os livros. Uma tragédia! ter de copiar o livro desde a primeira folha.

​

Pois estava eu a pensar na minha escola “Roldória” e no meu ofício de guarda-livros e já me via, com aqueles óculos grandes e a minha cor de mulato que eu julgava que era a cor dos guarda-livros, quando aconteceu o roubo da Lata. O Misterioso Roubo da Lata de Biscoitos.

​

  Se eu pudesse, fazia queixa ao Senhor Tenente da Polícia, mas eu mal o conhecia. Raramente ia à loja, porque quando precisava, mandava um bilhete por um sipaio e era logo aviado.

​

Com o tempo, comecei a pensar que a Lata de biscoitos teria sido roubada por um anjo. Porque se ninguém entrou pelas portas e as janelas têm todas rede para não deixar passar nem os mosquitos, só podia ser um ladrão vindo do céu que fura em todo o lado. Vocês sabem que os anjos são crianças pobres que nem têm uma roupa de vestir. Andam nus, coitados. Então, quem não tem dinheiro para comprar um calção, não tem dinheiro para comprar uma Lata de biscoitos. Foi aí que ele espreitou lá de cima e viu que eu estava a comer o meu biscoitinho e  quando fechei a lata com medo de comer tanto e tanto que a minha mãe desse conta, zás! veio num voo picado, igual ao do Fragoso no avião e roubou a lata. Nem aterrou nem nada. Foi só agarrar, comer e comer e deitar a lata fora, lá para longe no mar, não fosse Nossa Senhora dar conta da ladroagem.

 

Quer dizer: depois de ter inventado esta estória andei sossegado uns tempos. Anos, talvez. De biscoitos nunca mais gostei. O meu pai sorria: “Aprendeste por uma vez”, dizia ele contente como se tivesse ganho a sorte grande, que na altura, eu não sabia o que era. Já nem sei onde se compravam as cautelas. Sei que os vigésimos premiados (com terminações, naturalmente) eram comprados como moeda válida na metrópole. Assim se conseguia mandar algum dinheiro aos avós.

​

Foi na altura da primeira comunhão (eu fui tarde para a catequese) que a Lata regressou. Na véspera fomo-nos confessar ao Padre Sherring, um homem de longas barbas. Pecado daqui, pecado d’além, lá ganhei coragem para confessar o grande pecado que tinha: “Tenho muita raiva de um anjo ladrão e eu não quero perdoar, e porque assim e porque assado, que a Nossa Senhora já lhe tinha posto de castigo, mas mesmo assim...” O Padre, lá atrás da grade, tossia numa grande agitação, como se estivesse a rir, mas não estava, porque isto era um assunto sério. 

​

- Conta lá essa história.

​

E eu contei. “Tu viste o anjo roubar?” Não senhor. Mas só podia. Ninguém mais entrou em casa.

​

E o padre, se calhar, tentando desculpar o anjo que era lá da igreja dele: “ Podia ser um gato. Os gatos entraram pela janela, comeram-te os biscoitos todos e tu julgas que foi um anjo.” E eu vitorioso e feliz: “ E a lata? Como é que ele levava a lata?”

​

O padre mudou de estratégia: “ Faz de conta então que foi o anjo. Se Nosso Senhor te perdoa os pecados, como é que tu não perdoas ao anjo?” Mas pecados não são biscoitos, senhor padre. Os pecados doem e os biscoitos são doces. E ademais: não é pecado a gente perdoar aos anjos do diabo? Este, como era ladrão, devia ser um anjo de Lucifer. Eu disse mesmo Lucifer que era uma palavra mais bonita que eu tinha aprendido... Aí o padre arrancou para a sacristia  agarrado à barriga enquanto eu esperava por ele.  Lá dentro, na sacristia, o coitado tinha uns arrancos que às vezes até parece que estava a rir... mas não estava - devia ter tomado um purgante que é uma coisa ruim que eu tomo sempre para me limpar as tripas e eu não ter febres depois. Vocês já tomaram purgante de óleo de rícino? É horrível! Mas esqueçamo-nos deste assunto que é um caso muito sério.

​

Quando o padre voltou, com os olhos cheios de lágrimas (devia ter estado a chorar pelo anjo maldito) disse: “ Pois vai lá e vê se podes perdoar ao anjo...” Está bem, está bem, mas ficou-me aquela do gato. 

​

Um gato seria capaz de levar a lata na boca como eu vira que uma gata fizera com os filhotes? E eu aos gritos: “Damião ( Damião era o meu criado) a gata está a comer os gatinhos pequeninos. E o Damião  ria-se: “É assim que ela leva os filhos no colo dela.” Pasmei e agora pasmado estou que além de levar os filhos, os gatos pudessem também levar latas vazias na boca.

​

Andei com a gata e a lata, tempos e tempos, à espera de poder perdoar ao anjo. Só muito mais tarde vi que era impossível a gata ser a ladrona. Sim Senhor: ela pode pegar com os dentes na lata vazia, mas a tampa? Teria de deixar a tampa e nem a tampa sobrou. Já menos desgastado com o anjo disse-lhe: “ Está bem, perdoo-te, mas não quero ser teu amigo”. Calculo que ele deva ter chorado muito, porque no triste. Só não chorei porque o meu pai sempre diz que os homens não choram.

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E agora: vocês acham que os anjos também têm pai? É que no outro dia perguntei ao Senhor Padre se lá no céu haveria anjos pretos. Ele falou assim: “Por quê?” - Porque queria saber se os pretos e os brancos eram filhos do mesmo pai... Não sei porque é que ele se riu. “Todos são filhos de Deus”. -E qual é a cor de Deus? “Deus não tem cor.” Pensei comigo: se não tem cor é albino... se é albino, coitado, anda sempre escondidinho. Por isso é que Deus não aparece, nem sai da sua sanzala do céu...  E Deus mora na sanzala? Se é albino, mora. Se é branco tem casa. Se é mulato é conforme, se mora com o pai, se mora com a mãe...

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Estou agora com sessenta e seis anos. Naturalmente velho. Naturalmente com filhos e netos e, embora o tempo agora corra mais depressa - entra-se num ano novo e logo a seguir está-se a beber pelo ano velho - embora o tempo voe, dizia eu, tenho mais tempo para pensar. Resolvi então que seria tempo de rever o problema da lata. Porquê? E porque não?

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Sabido que não fui eu. Posto de lado o anjo e o gato que não terão sido, vejamos o caso daquele dia:

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É verdade sim, que mal minha mãe saiu de casa (comigo só ficou o Damião que se aproveitava destas escapadelas para ir brincar com a lavadeira) subi a uma cadeira, da cadeira para o aparador e consegui tirar a lata. Abri-a. Os passarinhos cantavam nos ramos da goiabeira e como já era costume esfarelei um biscoito na tampa da lata. Porquê na tampa? Porque é porcaria comer em cima da terra. Se faz mal à gente, como dizia a minha mãe: “Meninos, não brinquem com a terra que ficam doentes”, pior para os passarinhos que são mais pequenos. Depois, porque queria ouvir o som das bicadas na lata enquanto comiam. Eu tinha aprendido a fazer isso sem os espantar. Ou melhor: o Damião é que me ensinara.

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Estive ali entretido. Os passarinhos foram embora de papo cheio e eu juro que pus a lata no mesmo sítio: subi à cadeira. Subi ao aparador. E pus a lata direitinha, com o desenho das flores virado para cá, porque a minha mãe às vezes põe a lata virada assim ou assim para saber se alguém lhe mexeu. Ninguém entrou. Ninguém saiu. E a lata desapareceu. Um mistério que há sessenta anos, me anda aqui a preocupar a vida.

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Vocês lembram quando eu perguntei ao Padre se havia anjos pretos no céu? É que eu pensava assim: se os anjos brancos não roubam, porque são brancos, só pode ter sido um anjo preto, se os houvesse. Porque só os pretos é que roubam. Isto, ouvia eu dizer todos os dias... Às vezes, meu pai desabafava, quando havia um branco muito mau: “É pior que preto.” E eu ficava a saber que os pretos eram sempre maus, embora houvesse brancos ainda piores que eles. 

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Mas veio-me uma ideia à cabeça: poderia ter sido a minha mãe. Ora pensem comigo: eu era guloso como qualquer criança. Ou talvez não: mais guloso que qualquer criança. E vai daí, minha mãe entra, olha para a lata (eu não a terei colocado na posição certa) investiga o chão (lá terá visto uma ou outra migalha) e pensou consigo: “Espera aí que eu já te tiro o vício...” apanha-me distraído, esconde a lata e tem pretexto para ralhar comigo. Como sabe que eu gosto tanto dos biscoitos como da lata, vai comprar outra - esta verde - e eu, ou por orgulho ou porquê, recuso-me a comer. Como diz meu pai, fiquei enjoado. 

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Mas pensemos: se tivesse sido a minha mãe ela contaria ao meu pai e este acabaria com as suas teorias do enjoo e da mentira. Precisamente por isso é que o meu pai não entra aqui no rol dos suspeitos. Não faz sentido que um homem fale com tanta convicção de uma verdade e depois se chegue à conclusão que ele inventou essa mesma verdade.

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Continuando a investigar as minhas lembranças. Teria sido o Damião a tirar a lata, tanto mais que tenho de admitir (embora não queira) que ele era preto, e preto é sempre ladrão? Mais tarde vim a saber de duas coisas: as mulheres grávidas têm desejos estranhos - é a primeira; o Damião fez um filho à lavadeira. Isso sei eu, porque a minha mãe queria descontar dinheiro ao Damião para dar à lavadeira para as despesas do filho e ele refilava: “ Não senhora! Menino (era o filho dele) não tem despesa (ele dizia dispensa): mama nas mamas da mãe, não precisa o meu dinheiro.” Minha mãe queixou-se a meu pai desta lógica e ele limitou-se a dar uma gargalhada e a encolher os ombros: “ Sabes como eles são. Não pensam como  gente.” Meu pai não disse como a gente. Disse como gente. Como será a gente que não pensa como gente?

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Ora, fiquei eu a saber que mesmo não pensando eles como gente, a rapariga deve ter tido desejos de biscoitos que me via comer. O Damião foi buscar a lata. Lá terão comido um e outro e, de repente - a mãe chegou. Assim sem mais nem menos. Uma aflição: aonde guardar a lata para não ser ladrão? Escondeu-se a lata no monte da roupa suja e da roupa suja saltou para a quinda que ia e vinha com a lavadeira todos os dias da senzala para casa e da casa para a senzala. Lá ficou a lata sem poder voltar, porque mal a minha mãe chegou, deu conta da sua falta. Fazê-la aparecer seria confessar o crime...

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Pois então: se não fui eu, não foi o anjo, se não foi o gato, se não foi o meu pai, se não foi a minha mãe, quem sobra que terá sido? O Damião. Da lavadeira não se fala que não era de casa. Digamos: não era da família. 

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O Damião podia mexer em tudo que ninguém lhe ralhava. Ou melhor: a minha mãe passava o tempo a ralhar com ele - ou porque estava a brincar comigo, ou porque não estava a brincar comigo. Ele sorria: “Sim senhor, patroa...” e ficava a escutar os desabafos da minha mãe, como quem escuta cânticos do céu: “ Vocês são sempre os mesmos.” E ele com a mesma litania: “Sim senhor, patroa...”

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Nunca percebi até hoje, se ele sorria humilde, se ria por dentro das palavras de minha mãe. Os pretos são muito gozões, vocês sabem, não é? Dão uma de fingidos que não sabem, que não percebem, e estão a gozar...

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Bem: depois de resolvido o Mistério da Lata dos Biscoitos, não vou inventar outro à distância de sessenta anos: O do Sorriso do Damião.

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