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Crónicas

Crónicas da Rua 12

O  T R A B A L H O
O trabalho

Isso de escrever  para entreter o tempo, é bem  sinal de que não há nada para fazer.. Longe vão os anos em que havia quem se gabasse de que não podia estar sem fazer nada. “Quando não há trabalho, invento-o”, diziam eles. O que bem vistas as coisas, significava que o trabalho não  era tratado como uma ocupação de esforço, suor e sacrifício, mas como uma necessidade física de “meximento”, uma espécie de desporto que, por isso mesmo, passaria à categoria de divertimento. Seria um pouco assim, como quem embora trabalhando, dançasse, ou jogasse  ténis para se entreter.

 

Ora, é mais do que evidente, que só se diverte quem não tem mais que fazer. Só se diverte quem, pelo menos no momento, não trabalha. Pelo que se infere que ninguém inventaria trabalho, se tivesse algum trabalho para fazer.

 

Fica assim  dito e demonstrado que o trabalho só surge, a obrigação de trabalhar só aparece, porque houve muito tempo sem fazer nada  para pensar nele e, o que é pior,   inventá-lo.

 

O trabalho em si não é mau, quando feito pelos outros. 

O trabalho em si dignifica, quando alguém se sinta carecido de dignidade que, francamente, não se sabe bem o que seja nos dias de hoje. 

O trabalho em si  é ainda uma saudável ocupação que faz encolher barrigas ( o trabalho físico)  e  convulsionar  neurónios ( aquele outro trabalho que raramente se acredita que seja - o intelectual ). 

 

Porém, e disso ninguém  se deve esquecer, o trabalho é  consequência do pecado, é a sentença que a humanidade expia por um crime que não praticou, por uma maçã que não comeu, por um fruto que só Adão trincou, por uma tentação que só Eva sentiu.

 

Por isso, ai dos que gostam de trabalhar ! Ai dos que inventam trabalho ! Ai  de todos os que insistem e persistem em perpetuar pelo trabalho, a memória de um  acto ruim e condenado.

 

Bem hajam os que nada fazem ! Os que dormem. Os que descansam porque nunca se sentiram cansados. Os eternos dormidores que passam a vida a sonhar com novos e mais descansados descansos. Os puros de coração que, porque dormem e não trabalham e não trabalhando não pecam. Os quietos de corpo que relaxam para não sentirem a tentação de trabalhar. Os doidos porque se desimportam da vida que anda acordada numa outra dimensão. Os ricos porque  se não sobressaltam, nem têm necessidade de trabalhar.. Os bêbados porque se anestesiam e não sentem

 

Bem haja eu também, porque trabalhando nesta crónica que devia dizer alguma coisa, consegui  chegar ao fim, falando sem dizer nada.

Naturalmente
NATURALMENTE

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Crónicas da Rua 12

Há coisas que nem o diabo acredita: não ia à Ilha do Cabo há mais de dois anos.

 

Fiquei admirado. Diria melhor - atónito. Em cima da praia, o musseque cresceu. Junto ao mar, multiplicaram-se as lanchonetes. Não tarda, estarão as areias todas privatizadas. Construir-se-ão miradouros    para  ver o  mar  e  você terá de fazer a “despesa mínima”  ( como nas boates ) para tomar o seu banho. 

 

Do outro lado ( ou seja, do lado da Baía ) constrói-se também - ou casas de habitação com a boa parecença de palácios, ou mais lanchonete sem qualquer parecença especial.

 

Isto de ilhas aqui por Luanda está a dar que falar. É o caso do Mussulo, é o caso da Ilha dos Pássaros. E  se alguém se começar a lembrar,  será o caso da Ilha dos Padres e da Ilha dos Burros que, sem qualquer mau sentido, foi  nos tempos oferecida à União dos Escritores.

 

E a propósito de burros que são animais sem propósito algum, há quem diga que os jornalistas são mestres em fazer críticas sem apresentar nem sugestões, nem propostas de solução. Como se o jornalista ( ou com ele qualquer outra pessoa ) não pudesse criticar, dizer mal, dar uma simples opinião, apontar para onde o sapato lhe aperta só porque não sabe como se fazem  os sapatos. Como se eu, ao falar da Ilha, fosse agora  obrigado a  saber tudo, para ensinar o senhor governado a resolver  os problemas que é visível que esta ilha tenha.

 

Quem iria acreditar se eu chegasse aqui e dissesse: “ meu caros amigos, é fácil resolver este problema. Pegando no que há uns meses atrás  muito bem disse na Assembleia Nacional  um dos  Senhores Vice Governadores, informando que a maior parte das lanchonetes estão ilegais ( ainda que protegidas por bilhetinhos e recomendações, como igualmente afirmou); Atendendo a que se formos compulsar legislação ainda não revogada, as casas de habitação estarão possivelmente e também em situação irregular; Considerando que  as leis  são feitas,  para cumprimento igual de quem quer que seja, é fácil resolver esta questão - pegue-se no tractor e proceda-se, do mesmo modo determinado e firme, com que, de quando em vez, se derrubam  outras casas sem licença.

 

Mas quem é que me iria acreditar se eu falasse assim? Claro que ninguém, porque uma medida destas é não só drástica como, direi mesmo, fundamentalista, pouco política, economicamente gravosa dos interesses imediatos do Estado, por causa das indemnizações  a que seria obrigado.

 

Daí que eu faça uma outra proposta: ...

 

... que assim como existem reservas de caça em Angola, reservas de índios nos Estados Unidos, se façam aqui em Luanda, reservas de Praias Estatais Gratuitas ou de Baixo Custo. Mesmo que não sejam para tomar banho, porque naturalmente estarão poluídas,  servirão para mostrar aos nossos filhos e netos como é que as praias  antigamente eram, quando pertenciam a todos.

E embalado nesta fluência de propostas, talvez pudesse imaginar uma última, aconselhando a que não se  faça nada, mas se acabe ( por uma questão de transparência) com o Ministério do Turismo que não tem realmente nada para fazer ( pelo menos, ilhas já não terá).

 

Porque afinal, que turismo poderemos nós oferecer aos de dentro e aos que de fora  visitam as nossas ilhas?

 

Naturalmente, o turismo privatizado do ar, das águas, das praias e das areias...

 

Naturalmente, o turismo  futuro das lanchonete: beba, pague, tome banho e pisgue-se...

 

Naturalmente, um turismo que não será para nós. Será, como soe dizer-se, não para quem quer ( nem para quem merece, como antigamente) mas para quem tem e quem pode.

Mais uma vez Maitre Beye

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MAIS UMA VEZ MAITRE BEYE

Quando alguém morre é importante que lhe enterrem o corpo e lhe falem na alma. Era assim que diziam os antigos. Por isso se faz uma procissão de choros e lamentos no enterro  e se ora pelo eterno descanso da alma de quem se finou.

 

Quando alguém morre, suspeito de ter sido de morte provocada, para além do enterro e das cerimónias de culto apropriadas e habituais, é mister que a polícia investigue em que circunstâncias a morte terá ocorrido. 

 

Isto para dizer que as homenagens que se fazem a Maitre Baye e a todos quantos com ele morreram, sem se saber ainda o que na verdade lhes terá acontecido ( o próprio Conselho de Segurança diz que também não sabe) me parecem, um como que dizer que estejam descansados que nós não estamos esquecidos. Uma espécie de tributo de consciência dos que talvez saibam ( ou imaginam, ou concluam) e não dizem porque não podem. 

 

Ninguém queira fazer-nos acreditar que a ONU não tenha especialistas capazes de chegar num mês, às conclusões a que não chegou num ano. Isto, a menos que tenham sido postos no terreno, funcionários escolhidamente incapazes e incompetentes para não chegarem a conclusão alguma.

 

Como não acredito em crimes perfeitos ( a menos que não tenha havido crime) em Janeiro deste ano escrevia sobre o assunto, as linhas que hoje  repito e que, infelizmente, continuam actuais:

 

Maitre Baye morreu. Coisa que toda a gente sabe e ninguém esquece. O que se vai esquecendo, é que nos foi prometido, por quem tinha de explicar as circunstâncias em que o caso se dera, a razão porque ele morrera.

 

Quer dizer: se Maitre Baye foi morto porque um acidente o vitimou; se Maitre Baye morreu, porque propositadamente colocaram no avião ( dentro ou fora, as más línguas dizem que mesmo debaixo do seu assento) um artefacto qualquer que tivesse feito explodir o avião.

 

A Monua terá deixado para mais tarde o que em qualquer parte do Mundo se poderia ter explicado logo. Terá tentado resguardar com o silêncio, a Paz que parecia mais ou menos bem encaminhada. Não se podia sobrepôr à morte  de meia dúzia de indivíduos   ( Maitre Baye e os seus funcionários ) as esperanças de Paz de um povo inteiro. Não se deveria abrir um nova frente na batalha de acusações que então se faziam.

Porém, agora que a Paz já não existe, e as esperanças dela parecem passar pela voz atemorizadora Canhões;

 

Porém, agora que Dezembro passou, e a promessa de se saber como morreu Maitre Baye, parece ter sido esquecida;

 

Porém, agora que o silêncio é total, que ninguém diz palavra, que o próprio Maitre Baye parece nunca ter existido, será altura de se ouvirem as conclusões a que chegaram os peritos sobre este acidente, a menos que a Monua ( que viu, como coisa pouca, rearmar exércitos nunca desmobilizados ) não queria de novo, a bem da Paz que já não há, sobrepesar de culpas e mais uma vez, um dos assinantes do Acordo de Bicesse.

 

A democracia tem segredos e conveniências muito pouco democráticas, quando julga que se todos devem votar, só alguns têm o direito a saber e a decidir.

 

Assim foi com Kennedy – hipoteticamente morto por um, que foi visivelmente morto por outro, e afinal, não terá sido morto por ninguém, porque ainda hoje não se sabe muito bem como tudo se terá passado.

Se isto aconteceu com Kennedy que era, na altura,  o homem mais poderoso do mundo;

 

Se isto aconteceu com Kennedy, presidente idolatrado como nenhum outro, bem visto por todos como sabemos, olhos de pioneiro na política americana para o caso de África, o que não acontecerá com o  Maitre Baye que era tão somente o enviado especial do Secretário Geral das Nações Unidas?

 

Voltando outra vez à questão: do que nós precisamos de saber é se foi bomba, ou se foi míssil, para nos pormos a adivinhar: quem tinha armas ali ( do lado das bombas ou dos mísseis). Quem eram os amigos do Presidente de lá e quem se esteve nas tintas para os embargos da ONU, e quem finalmente sabia, confiou, tinha a certeza, de que para além do peso da verdade, valeria muito mais a força subornante do silêncio definitivo...

 

Todos nós havemos de morrer um dia. Mas em África, onde ninguém morre de morte natural, precisamos  de ir ao quimbanda para saber qual foi o feitiço que lhe matou. Foi de bomba, ou foi de míssil, o feitiço que levou o Maitre Baye? É só dizer, meus senhores, que à falta de melhor a gente acredita.

LUANDA - NOME DE CIDADE

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Luanda - nome de Cidade

Porque tem a nossa cidade o nome de Luanda?

 

Diziam os entendidos que quando os portugueses chegaram a estas paragens, perguntaram a um habitante desta cidade que nessa altura ainda não era cidade, como é que se chamava a terra. E ele, o cidadão que ainda não era cidadão, julgando que eles se referissem a qualquer coisa que haveria por ali, terá dito: Luanda.

 

Digo eu, que estou no meu direito de também dar opinião, que tendo Paulo Dias de Novais chegado a estas terras, chamou o seu adivinhador ( que eles também usavam este tipo de feitiçarias) e disse-lhe:

- Dizei-me senhor, se aqui é terra de boa feição para nela  construirmos uma cidade?

Recolheu-se o adivinho e para mais de três hora esteve a estudar os astros, a deitar as cartas e a experimentar os búzios que aqui se chamavam zimbos e eram dinheiro

-       Senhor D. Paulo Dias, dizem os astros que aqui estabelecereis a vossa cidade, com a Graça de Deus e por mercê D’El Rei Nosso Senhor que Deus o Guarde. A vossa cidade será um grande furo para El-Rei e para os Reinos de Portugal, e um grande buraco para quem  venha a morar nela.. Chamareis a esta cidade Luanda - a lua que anda, posto que, sendo de sobejo esburacada, se semelha bastante à Lua, nosso planeta satélite que não tem pedaço sem buraco. Este é o vosso sonho. Esta é a vossa Lua. Esta será a vossa cidade de Luanda. 

Ao longo dos séculos estudaram as autoridades a forma de melhor esburacar a cidade, fazendo juz ao nome que esta tinha. E de buraco em buraco chegamos aos dias de hoje, 

em que os buracos atingem, pela longa e profunda experiência, uma qualidade e variedade insuperáveis.

 

Os buracos especializaram-se. Há-os para todos os gostos. Desde buracos de parte-molas que  trabalham para o sindicato dos mecânicos; buracos de chupa cócó que os colonos deixaram cá e vivem normalmente entupidos nas ruas e estradas; buracos de tira petróleo que quanto mais eles tiram lá no mar, menos a gente tem cá no bolso para comprar o dito; buracos de angolano fino e estrangeiro que fala grosso que são esses buracos que a gente pensava que só moravam nas Lundas, e afinal, estão a morar em todos os lados de Angola.

 

Há ainda, inventados há relativamente pouco tempo, as ravinas que são buracos geofágicos porque comem terra e  destróem as árvores, as casas, os aeroportos e mais quê; São também conhecidos por buracos errantes que andam por aqui e por ali e não vão a parte nenhuma. Esburacam-se só para chatear. 

 

Porém,  e continuando a ser a família a célula da sociedade, há ainda os buracos familiares,  que são aqueles que vivem à porta da nossa rua, junto da nossa família. São buracos familiares por duas razões: uma, porque vivemos com eles há mais de quinze e vinte anos; outra, porque o buraco grande que é o pai e o buraquinho  feminino que é a mãe fizeram aqui a sua ninhada. Como estamos em África, onde  não se conhecem os métodos nem as pílula da limitação da natalidade e do espaçamento de nascimentos, são sete os buraquinhos pequenos e seguidos que são os filhos. 

 

E assim chegamos ao fim deste esburacada crónica sobre Luanda, terra de grandes buracos ( buracos no chão, buracos nas casas, buracos nas Repartições, buracos aqui, buracos acolá) que há até quem pense assim:

 

- Com tanto buraco, não seria melhor, em vez de governo, arranjar um catrapiler para aterrar tudo?

 

Pois é, digo eu: você consegue aterrar um buraco, mas será que ele fica definitivamente enterrado? E como é que você consegue enterrar  um buraco grande, sem ter de abrir outro buraco maior?

 

Esta, a dificuldade que a gente tem : enterrar um buraco sem abrir outro buraco. Eis o caso!

CONTRA

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Contra

A África contra a Sida. Uma bem elaborada campanha de TV, com actores de alta qualidade, que só nos merece um reparo: não haver igualmente uma América contra a Sida, uma Europa, uma Ásia ou uma Oceânia igualmente contra ela.

 

Claro que isto parece ter uma explicação: levar as pessoas a pensar ( e naturalmente também os africanos) que são eles que têm  “ culpa” da Sida, tal como se boatou, sem qualquer base cientifica, quando esta apareceu.

E como os africanos são uns pacíficos bodes expiatórios de todas as culpas, aí temos,  os spots que a nossa televisão agradecidamente passa, que a TVI (portuguesa) igualmente passa, para nosso benefício, para que  nos acautelemos (e a Europa e a as Américas se desculpabilizem) numa campanha que parece  ser exclusiva e unicamente feita para nós. Como se fossemos os únicos. Os proprietários da doença. Os coitadinhos que possuímos aquilo que os outros não têm - Sida.

 

Entretanto, as doenças não param. Se não temos um catálogo de doenças à escolha, poderemos dizer que todos os anos se arranja uma meia dúzia de novas enfermidades . E nesta, a mais recente de todas, parece ser a das vacas loucas.

 

Calculo que os grandes estrategos, devam futuramente atribuir a África, senão o começo, pelo menos a culpa do seu alastramento. No propósito de uma grande campanha da “ África contra as Vacas  Loucas” talvez inventem, muito apropositadamente, ONGs do bife para matar a fome ao terceiro mundo. Servir-se-à a dita mazela em bifes normais ( bem ou mal passados) com ovo a cavalo, em bifes de cebolada, em bifes panados e, se é certo que as pessoas morrerão naturalmente por isso, fazem-no pelo menos de barriga cheia, devidamente aconchegados, o que poderá vir a constituir um nóvel  item nos  direitos humanos: morrer abifado para matar a fome.

 

Um pouco mais ou menos assim como quando se fabricam minas e depois nos mandam sapadores qualificados para desminar as nossas terras e próteses para ajudar a andar as nossas gentes.

 

O que no fundo é preciso entender é que é urgente redescobrir a caridade. Reinventar e modernizar a caridade cristã a cada momento, circunstância e passos da nossa vida. Modernizar e adequar a caridade ao progresso e às exigências do tempo. Entrar no terceiro milénio continentalizando a caridade, globalizando a mão amiga, criando espaços para que o bife contra a fome venha a ser uma realidade...

 

Vistas por um certo prisma  as vacas loucas, podem vir a ser  consideradas como agentes da caridade. As minas, a Sida, serão indiscutivelmente uma  euro-americana oportunidade de caridade. Principalmente quando, longe de casa, em terras de Missão, se podem reconfortar os corpos e salvar as almas.

COMO NASCE UM BURACO

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Como nasce um buraco

Cai uma lágrima de chuva e faz um furo no chão.  Passa um carro, um camion - entra e salta, bate e alarga. A vizinha então ajuda: descobre o primeiro ofício do buraco que é o de sítio de despejo. Aí se podem despejar muitas águas: a suja, a de sabão, a das sobras das comidas e  até, de outras sobras que é feio dizer aqui.

 

Cheira mal? É o cheiro da  natureza que nasce cultivada com a ajuda dos porcos e galinhas, cães e gatos que vão ali vasculhar no supermercado da  sobrevivência.

 

Passa um ano e chove mais. O buraco alarga. Agora já não é um buraco sozinho - tem lama. Lama de todas as cores que o buraco não é racista:  tem a branca de terra arenosa, vermelha de barro tijolento e a escurinha que é mesma da cor gentia de cá. Para o ano será um lago cheio de muitas companhias: moscas, mosquitos, limos, algas onde nadam tuqueias e cacussos. 

 

Cuidado! não  ponha sal nessa água. Se a água fica salgada você pode ter no tal buraco, bagre, peixe espada e tubarão. É um perigo para a criançada que toma banho e não sabe  que pode morrer de morte comida. Tubarão é bicho que mata quando é peixe, e come tudo da gente se é pessoa.

 

Atenção: esse buraco que é lago  aí no meio do Bairro você tem de o tratar bem, com todo o  carinho do mundo... Há buracos como esse  que têm mais de dez, quinze e vinte anos. É preciso respeito pela idade. São buracos que o colono deixou abandonados e a gente nacionalizou. Agora são nossos. Velhos na idade da reforma, mas a gente lhes aguenta no serviço de parte molas que a reforma não dá.

 

Ao contrário do que se diz, a lagoa do buraco não está  só a  provocar doenças, também educa. A Lagoa do Buraco da minha rua é, verdadeiramente, uma Escola dos Tempos Livres. Ali aprendem as crianças  a arte de pescar, nadando na sua higiene de todos os dias. Ali aprendem os meninos  a defender a sua propriedade, enxotando e berridando os outros que não são de cá. Conhecem a lei:  neste buraco das pescas só pesca o próprio dono do peixe.

 Entendo que em cada escola se deveriam reunir todos os buracos do recreio para fazer deles um buraco só. Teríamos assim um só buraco educativo em vez dos tantos que temos.

 

 Os próprio adultos que já não precisam de ser educados, porque sabem que  p’ra ter, é preciso xingar a mãe dos outros, refilar as dificuldades, porque quem não chora não mama, os próprios adultos, dizia eu, graças a esses buracos estão a ter uma saúde de ferro com a ginástica que fazem: sapato na mão e calça arregaçada, de cada vez que entram e casa, ou saem para o serviço. Graças aos buracos já houve até dois casamentos, porque as donas, como não tinham calça para levantar, arregaçaram as saias. E isto é como quem diz: quem as olhou cobiçou e quem cobiçou se quis ir mais de perto, foi parar lá na Igreja. Que aqui neste Bairro dos Imbondeiros, não se usam esses costumes asfálticos de ricos - ir só no registo civil. Aqui, quem quer olhar e ver a fazenda, paga completo.

Falaram-me que anos atrás um buraco destes matou a fome a um bairro inteiro. Foi o caso de ter aparecido ali, com a Graça de Deus, um jacaré, já nascido na idade de adulto. Podia ter comido gente, mas como as panelas estavam em lume de aquece que é  só  água, meteram lá dentro o jacaré que, com a pressa nem foi bem cozinhado, mas foi muito bem comido. 

 

É preciso não esquecer também que  os buracos têm uma forte vertente ideológica. São buracos democráticos  - todos, sem qualquer discriminação, os podem encher de lixo. São, para todos, o banho das crianças e os mictórios dos adultos. Ainda mais: servem água gratuíta para quem quer lavar a roupa. Cheiram mal para toda a gente. Não escolhem nariz, nem posição social. Quem passa cheira. Quem não cheira, é porque não passou. Dividem por todos as doenças e matam a todos por igual. Só não podem matar rico,  porque rico não mora cá e filho de rico não está aqui.

 

Mas isto não quer dizer que a gente tenha menos respeito pelo buraco do nosso bairro. Porque defeitos todos nós temos e buraco é como gente, com as sua próprias dificuldades.

 

Entendo que devam ser louvadas as autoridades que ao longo de todos estes anos têm conservado, tratado e aumentado até, com desvelado carinho, e com inusitado cuidado todos os buracos que a nossa cidade tem. 

 

Todos nós sabemos que os buracos fazem parte do património da cidade. São uma potencial fonte de interesse turístico, pelo que entendemos que se deva criar a Associação da Conservação dos Buracos, lembrando sempre que de cada vez que se nivela um buraco perde-se uma história. E propor criar, a Comenda do Buraco. Quem deverá ser o primeiro agraciado como  Comendador do Buraco? Quem?

CAIXEIROS VIAJANTES

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Caixeiros viajantes

Quando nos aproximamos do País dos Pés-P’rá-Frente, não sabemos se deveremos dar graças por tanto tempo vivido, se apresentar reclamação ( seja lá a quem for) por tão pouco tempo que nos resta ainda por viver.

 

Começa-se a olhar, e não são só os jovens que nos são distantes, mas outros já a começar a caminhar pela madureza de idade.

 

Perguntei outro dia a uma menina e moça, mais moça que menina, se se lembrava dos caixeiros viajantes. Que não, como será natural, em quem tem pouco mais que trinta anos e nunca chegou além do Cacuaco, para lá de ter viajado pela África do Sul, Europa e quejandos países do mundo.

 

Pois, um caixeiro viajante era um vendedor de loja a loja que representava os grandes armazéns do País (na altura Província e depois Estado), mostrava a fazenda, discutia os preços, oferecia as vantagens, anotava as encomendas  e, daí a oito dias, chegava a mercadoria. Uns dando a volta pela periferia da cidade, outros rasgando os interiores de Angola. 

 

De carro, levando o mostruário do que tinha para vender, o caixeiro viajante era, normalmente, um homem bem posto, sempre impecável, de fato e gravata ( pelo menos no planalto, era assim) bem falante e capaz de estar uma noite inteira a contar anedotas. Este era um do seus melhores predicados, a que se juntava o poder de persuasão. Bom produto, boas condições, muita lábia e bom humor - eis pois, o retrato do caixeiro viajante. 

 

Era sempre com uma anedota que ele entrava na loja do cliente e com outra que saía. Nunca ouvi que repetissem qualquer anedota. Contavam-nas, umas a seguir às outras, sempre novas, sempre diferentes. Possivelmente reciclavam-nas no final de cada viagem, inventando novos personagens, colocando numa estória o final de outra e assim por diante.

 

Claro que os contadores de anedotas não eram todos iguais: uns eram bons, outros só assim-assim. Uns decoravam e repetiam, outros inventavam, adaptavam e pudesse ter acontecido o que quer que fosse no Estado que era Angola, ou na metrópole quer era Portugal, logo ali eles contavam uma estória a propósito.

 

Alojavam-se e comiam no hotel. Muito raramente em casa do cliente para evitar inimizades e sussurros de preferências com os restantes clientes. Eram éticos: nunca assediavam os fregueses de outro colegas.

Esta é a figura do caixeiro viajante que aparece só a partir da década de sessenta, quando as estradas deixaram de ser as picadas que até aí tinham sido. Naturalmente que nem sempre foi assim. Antes, o combóio era o grande transportador - e primeiro o aviado - aquele comerciante-empregado que explorava por sua conta uma loja de outro, com a obrigação de comprar tudo ao patrão, e depois o caixeiro viajante cumpriam aqui uma dupla função: a comercial, vendendo, e a social levando e trazendo informações e notícias que, sem telefone, interessavam à curiosidade isolada de todos. Comerciantes havia que se conheciam sem nunca se terem visto. Viviam do retrato que os caixeiros viajante deles faziam - uns mais velhos, que muito raramente saiam do “seu mato”  outros que por ganância, não perdiam um dia de venda e não desciam até à vila cabeça do seu município, quanto mais à cidade capital do seu Distrito. 

 

E lá iam eles ao longo da linha, Lobito/Teixeira de Sousa. Sair de tarde, passar a noite naquele tem-que-não-tem-hora do combóio, com um farnel para entreter a fome e chegar ao Huambo ao outro dia, a Silva Porto ao cair da noite, ao Cuemba pela roda das onze da noite, ao Munhango muito mais para tarde e a Vila Luso que hoje se chama Luena, já não sei muito bem quando.

 

Os caixeiros viajantes, com o tempo, desapareceram de Angola. Talvez regressem um dia, quando a paz amanheça pelos caminhos do interior. Que enquanto a guerra impedir que as estradas se abram, os nossos caixeiros viajantes serão outros...

 

... aqueles que “estamos a vir com eles”, no porta a porta da desgraça, oferecendo mostruários de fome, de morte e de miséria.

A PEDRADA E O PALAVRÃO

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A pedrada e o palavrão

O menino mal diz papá e mamã e já sabe um palavrão. Ensinou-lhe o pai ou o padrinho e tem imensa piada. Piada porque é inocente o modo como o menino fala. Piada porque é bem visível como a criança é inteligente e esperta. Piada até, porque uma palavra assim tão bem dita, tão bem soletrada, tão redondamente  pronunciada com todos os éfes e érres até nem parece aquilo que é – uma asneira valente, um grosseirismo pesado.

 

Porém o menino cresce, e aquilo que ele dizia e chamava a todos, começa a tornar-se incómodo. É aí que o pai vai avisando: “ o menino não diz isso, ouviu?” e a mãe que tem a mão mais leve, dá-lhe com força uma sapatada.

 

O menino chora, é evidente. Não tanto pela dor da palmada que levou, como por não perceber o que terá feito de mal. Antes, quando chamava aqueles nomes ao pai, ao padrinho, ou ao vizinho, todos se punham lhe achavam graça e o encorajavam a repetir. Hoje, quando as diz, todos lhe ralham e algumas vezes a mãe bate. Porquê?

 

Será que já não tenho piada? pergunta-se o menino. Será que já ninguém gosta de mim? Será que não digo as palavras tão bem, tal como antes as dizia?

 

E com todas as dúvidas que tem, o menino torna, embora muito a medo, a pronunciar a asneira. E apanha novamente e novamente também ralham com ele. E agora é o pai, a mãe, o padrinho, o avô e a avó. O menino está aflito: não sabe que mal terá feito ao mundo para todos estarem contra ele.

 

Fazer o quê, afinal?

 

Temos um outro caso: o menino aprendeu na rua, ou na creche, uma daquelas palavras que não devem ser dita. E achando-a bonita, não se contém que não chame mãe por ela: “Mamã, tu és uma …” e a mãe, sem tempo para mais nada, dá-lhe um estalo e ralha com ele.

 

Porque lhe terá ralhado a mãe, se a palavra é tão linda que ele até veio todo o caminho a dizê-la para a não esquecer? Porque terá ralhado a mãe se quem lhe ensinou foi o Toninho que é um amigo tão bom, e o João e o Manuel, todos eles até dizem a palavra e ninguém lhes bate?

 

Que vou fazer, afinal?

 

É simples: não ensine, nem deixe ensinar asneiras à criança. Não ache piada nem repreenda quando ela diga uma. Faça de conta que não ouviu. Por vezes a criança diz como quem experimenta, para saber o que significa, se está bem ou mal. A criança é curiosa por natureza, e se você diz: “não digas”, quer naturalmente saber porquê e sabendo que a palavra é feia pode guardá-la no seu arsenal de violências. Um dia, quando menos se espera ela sai. É preferível deixá-la esquecer…

 

Ninguém pensa que a criança não aprenda esta e outras asneiras mais tarde, mas aí, sendo mais crescida, entenderá melhor porque não deve dizê-las.

 

Não tenha medo de dizer a quem a rodeia que não ensinem tais palavras ao miúdo. Palavrão ensinado hoje, é palmada apanhada desnecessariamente amanhã e se julga que tudo fica por aí é engano.

 

A criança, como já lhe dissemos não entende o porquê do seu castigo, fica inquieta durante dias  e o que é mais grave guarda consigo ( e sem saber) um trauma de injustiça que pode  acompanhá-la por toda a vida. Complexo de não entender o que os outros querem dela. Medo de expor o que pensa, preferindo ir atrás da opinião dos outros que expor a sua própria.

 

O que por vezes estraga a criança é a vaidade dos pais: querem-nas mostrar mais inteligentes que as outras, mais graciosas que as demais, mais bonitas, mais vivas, mais cheias de qualquer coisa que nenhuma outra tenha.

 

E assim, como o menino já dance, já fale, já seja muito engraçado de seu natural, fazem dele um papagaio e ensinam-lhe uma asneira.

 

Você não pode dar aos outros o direito de estragar a educação dos seus filhos ou de lhe criar problemas mais ou menos graves de ordem psicológica. De qualquer modo a asneira é feia, é agressiva, é usada quase sempre em casos de violência. É, digamos, a pedra da palavra que atiramos às janelas de vidro dos nossos inimigos.

 

E tal como você não deixa que ensinem o seu filho a partir os vidros das janelas dos outros, assim também não deve permitir que lhe ensinem a violentar os ouvidos de cada um.

A INVENÇÃO E A ASNEIRA

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A invenção e a asneira

Época gloriosa foi aquela logo a seguir à Independência em que a língua portuguesa sofreu uma apropriação nacional e passou a andar ao nosso lado e a falar do nosso jeito..

 

Retirados os guardiães do português que tanto podiam ser os eruditos professores como o Dr. Mourão Correia, ilustre lusitanista talhado em má cepa de inspector escolar, até ao Xico da Esquina que se sentia tão dono da língua que explicava ao servente que o vinho que era vinho  binho se dizia e como binho  se bubia ...

 

Retirados os achados donos da língua e tendo esta ficado, embora livre, desvalida de tão douta e puritana protecção, veio ela para a rua conviver com uma revolução que se pré-   

anunciava ( e afinal morreu defuntada pelo abandono) inventar palavras com sabor da farinha que houvesse e do peixe frito que aparecia.

 

Primeiro veio com a guerra a militarização da língua: se o inimigo atacava  gente "aplacava" no chão, se o inimigo "desconseguia" logo a gente lhe "colocávamos" que é como quem diz, imobilizávamo-lo como se ele fosse um "sabotador" desse que andam a roubar carteiras na rua. Porque sabotador, estareis lembrados, pulou o muro da guerra, para o da economia e passou a querer dizer também  ladrão.

 

Depois de ter assentado praça, a Língua Portuguesa achou que embora houvesse trinta e tais nomes para dizer menino, desde criança, curumi, criatura, gaiato garoto,  guri, fedelho, infante, miúdo, moço, nhonhô, párvulo, pequeno, petiz e rapazinho, era bom termos uma palavra nossa e assim botámos no dicionário de todos os dias a palavra pioneiro, o tão conhecido piô.

 

Outros vocábulos que o dicionário não tinha e a gente precisava como "panicar". É certo que no português anteriormente falado a gente entrava em pânico, mas agora com guerra e morteiro havia que arranjar um verbo de maior rapidez que grande era o medo e a necessidade. Deixou de se entrar educada e portuguesmente em pânico, para se panicar logo ali.

 

E todas estes descobrimentos que fazíamos não às Índias dos saberes, nem e aos Brasís da crioulidade, mas às raízes populares da nossa alma, e todos estes astrolábios que ajustávamos à realidade das nossas estrelas eram legítimos.

 

Legítimos, porque tinham uma razão. Legítimos, porque apontavam para uma necessidade. Legítimos porque ao invés de empobrecer e conspurcar a língua a enriqueciam e a tornavam mais tropicalmente viva e adaptada. Legítimos também, porque como dono e utente desta língua a transformávamos sem outra intenção que não fosse torná-la mais nossa, mais comunicável, mais à medida das nossas precisões.

 

Ora pois que servem estas palavras para duas coisas: a primeira para demonstrar que não sou um puritano da língua, a outra para chamar a atenção a todos aqueles que nos jornais, nas rádios, na Televisão, a atropelam, a conspurcam, não se sabem servir dela.

 

A língua não se quer virgem, quer-se amante e namorada. Amem-na, estimem-na, mas não a prostituam. 

 

Já não falamos dos às que saem quase sempre trocados e se transformam em as e que por muito que se fechem os olhos, os ouvidos e o entendimento, fazem uma diferença como do "dia p'rá noite", mas falemos do mas que ainda se pode corrigir e não dizer mais, porque uma coisa é eu ser casado, mas ter mais que uma mulher, outra coisa é você ser solteiro mas, por muito que se esforce não conseguir mulher nenhuma.

 

Uma mesmo situação é a de quem protesta porque acha que tem razão, outra quem a pretexto da razão que tem procura magoar os outros. Temos ainda o director ( e não o direitor) que não pode ser agraciado com um jantar, porque não é  possível  ser condecorado com tanta comida ao peito.

 

E finalizo com o culminar que é empregue como finalizar, quando significa principalmente, que se chegou ao ponto mais alto de uma celebração, quando a etiqueta obriga que se tenha na mão, mais que um copo de vinho branco, uma taça de champagne.

A CULPA É DO GOVERNO

Crónicas

Crónicas da Rua 12

A culpa é do governo

Pegue em sessenta artista e diga que vai levá-los ao estrangeiro. Pode ser, por exemplo à Àsia. A Hong-Kong, ou a Macau.

 

 Dê entrevistas à Radio, à televisão e aos jornais. O acontecimento merece: o nome de Angola nas montras do mundo asiático. Escreva ao nosso embaixador da China. Pode ser que ele por lá arranje qualquer coisa e a caravana em vez de ir so a Hong-Kong e Macau vá também a Beijing. 

 

Politize a situação. Fale na necessidade política de dois povos se conhecerem. Nas mútuas vantagens económicas, cuturais, etecetra. Peça uma entrevista ao Embaixador da China em Luanda. Ele é um diplomata educado, nunca lhe dará um não rotundo. Naturalmente dirá que vai estudar o assunto. Dê uma outra entrevista e diga o que não é verdade mas também não é mentira:

 

- O Senhor Embaixador escutou com agrado a nossa proposta e está neste momento a estudar cuidadosamente a oportunidade da nossa deslocação

 

Aqui chegado solicite um patrocínio ao governo de setecentos mil dólares com os mesmos argumentos. Artistas que se deslocam à China ( não diga quantos, nem fale das vantagens económicas,  que toda a gente sabe que não serão nenhumas)  e fale das demarches já encetadas junto da nossa Embaixada em Beijng e da Embaixada Chinesa em Luanda. Pode falar da disponibilidade e atenção com que o Senhor Embaixador da China o ouviu.

 

Peça igualmente patrocínio às grandes empresas sedeadas em Luanda (nacionais e estrangeiras). Às empresas que fazem contas, peça unicamente sem avançar números, às restantes, em que o dinheiro cresce por milagre, vá pessoalmente e avance com cifras na ordem dos  vinte e trinta mil dólares. Diga que fulano já deu, que eles normalmente, não gostam de ficar atrás...

 

Dê mais entrevistas. Pressione. Faça-se acompanhar de  alguns artistas de prestígio. Dá seriedade ao empreendimento. Aguarde. E agora que já trabalhou o suficiente, faça um intervalo e considere duas hipóteses:

 

Ou o governo dá para aí uns quinhentos mil e você com mais os milhares que conseguirá no privado  não vai, naturalmente levar os sessenta mas uns vinte. Queixe-se do “caché” incomportável que os restantes exigiam. (Os restantes ninguém saberá quem são, porque você teve o cuidado de só falar com dois ou três... Todos são os restantes, e ninguém será o restante). 

A tourné realiza-se e você vai, mete uns quantos mil no bolso e regressa como herói nacional, pronto a outras iniciativas culturo-lucrativas e possivelmente de maior monta, ganha nome nas embaixadas e, quem sabe, dá nas vistas o suficiente para levar as pessoas a pensar que o falecido Ministério da Cultura não lhe ficará assim tão mal e o ressussite. Dinâmico, inteligente, bem relacionado, o que é que afinal queremos mais?

 

Segunda Hipotese: o Governo não lhe dá nem quinhentos, nem cem, nem nada e você  numa entrevista fala da falta de sensibilidade política e cultural  do governo que deitou abaixo todo um aturado trabalho de mobilização e lhe fez perder um considerável volume de dinheiro ( que foi, como se sabe, nenhum) que são os tais dólares que os parvos lhe deram e você, naturalmente, não devolverá porque os “gastou” nos preliminares desta acção.

 

Como vê – negócio fácil, sempre lucrativo e sem grande suor...

A ÁGUA DA MINHA RUA

Crónicas

Crónicas da Rua 12

A água da minha rua

Vai fazer precisamente agora nove anos que a água da minha rua se zangou comigo. Lá porquê não sei, mas calculo que por uma questão de oportunismo. É com mágoa que vos afirmo, com uma profunda e nunca desmentida tristeza que vos digo, que a água da minha rua  fugiu da minha casa. Como é uma água especial, com pernas e tudo, lá se desviou ( ou foi desviada) para torneiras de gente mais rica, mais importante, mais quê. 

 

Se a água se desviou ela sozinha, porque entendeu que viveria melhor noutro lado, está no seu pleno direito. Cada qual escolhe o seu próprio caminho. Lamento somente não lhe ter dado a vida que ela queria, a vida com que  ela sonhava, desde que saiu lá dos tanques da EPAL. Possivelmente, um bom fogão para a ferver, ou uma lexívia especial para a desinfectar a quatro gotas por litro, ou um filtro desses modernos de ozono que passa só e já sai purificada

Muito embora tratando-a com o carinho que merece, a água tem exigência que nem todos podem assegurar. Alguns, infelizmente, consomem-na mesmo bruta que é assim, como sabeis, uma água em estado de analfabetismo total – sem leitura de qualquer contador.

 

Se por acaso, a água da minha rua não se desviou, mas foi desviada contra a sua vontade, estamos a braços com um caso de  rapto que só a polícia poderá deslindar.

 

Como sabeis o rapto é um crime de invulgar crueldade. Senão vejamos: estivesse eu no deserto e ao fim deste nove anos sem água de lavar, nem de beber, o que é que me teria acontecido?

 

Morasse eu na Cuca ou na Nocal e tivessem desviado a água, o que é que nos aconteceria a todos? Era o agravamento da sede e da indústria nacional. Claro que há aí quem  use unicamente da importada, mas mesmo assim têm sempre de lado uma garrafita da nossa para quando entra visita:

- Vai uma birita da nossa, da nacional? (oferecem eles). Aqui em casa não se bebe de outra. Está boa. Posso dizer que está tão boa como qualquer outra.

A gente sai e lá está ele a mandar a prima ( que aliás veio para casa dele para estudar e acabou por tirar a especialidade de servir à mesa do senhor seu primo e de ser criada dos filhos do dito) dizia eu que manda a miúda pôr a referida nacional na geleira porque pode aparecer  a próxima visita. 

 

Pois assim é que me desviei para a cerveja quando estava a falar de água, assim como se desviou ( ou foi desviada) a minha água quando, se calhar, eu estava distraído com uma cerveja. 

 

Ainda há uns tempos me apareceu  um tipo a querer-me obrigar comparar um contador. 

Dizia-me ele:

- Se o Senhor não tem contador, tenho de lhe multar.

 

Dizia-lhe eu:

-       E quem é que lhe multa você que não me dá água?

 

Foi embora sem resposta, mas deixou-me uma montanha de problemas e dúvidas:

 

Como se chamará um contador que não conta? 

Contador desempregado, ou contador reformado? Contador doente, ou contador em greve de sede?

 

E outro caso: 

Como é que um contador “virgem” ( com tudo a zero no aparelho de quilometrar a água) aprende a contar se nunca contou, nem aprendeu a contar? Teremos de abrir um curso básico de contagem para contadores em idade escolar?

 

E outro ponto:

Qual é a idade escolar de um contador? E a idade de reforma? se há contadores em Luanda com mais de cinquenta anos de serviço, que já deram trinta voltas aos carretos e ainda continuam a contar?

 

E contar o quê? se a água passa e não quer saber de contas.

 

E contar para quê, se a gente paga sempre o mesmo, de há vinte e tal anos para cá, sem ter contas nem contagens.

 

Para que serve contar a água, se não se conta na conta?

Para que serve ter contador se não há água na torneira?

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