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Ora vamos então ver que estória vos vou contar ...

-       Agora que está calor (por favor), quero uma estória de barcos e de mar.

-       Essa não! Se o problema é do tempo, vá à praia.  A gente espera um momento. Saia, meu amigo, saia.

-       Isso rima com papaia.

-       Pois é - só que não  serve p´ra se fazer uma estória  ... 

-       Quem disse então que não serve? Sei uma toda de cor, de memória ... se queres escrever, escreve ...

-       És tolo!

-       Ai que bom! Rima com bolo.

     - Logo depois da papaia, p´ra depois matar a  fome, comia (isso comia) um bolo,um bolão enorme.

-       Que parvo!

-  Bolo-parvo não conheço e olha que não esqueço o nome das doçarias...

-       Não é o bolo que é parvo - és tu.

-       Isso sim! Chamas-me parvo, enfim, mas se houvesse aqui um bolo, comias ou não comias?

-       Ora vamos lá então: que estória   querem vocês que eu comece a contar?

-       Já disse que a do mar.

-       Eu prefiro a da papaia.

-       Tu aqui não contas nada. Quero uma estória contada de um barco pequenininho que vá pelo mundo fora... 

-       Ora, ora! Um barco assim tão pequeno, só se for uma canoa.

-       Essa é boa! E canoa não é barco?

-       Pois é. Mas não consegue ir p´ra longe.  

-       Se eu lhes puser um motor ...

-       Só um motor não lhe chega. Precisa ser barco grande para aguentar as ondas do mar alto em que navega.

-       Ponho-lhe então umas asas e sigo nessa canoa (olha só como ela voa! Que bom que é vê-la voar)! ... 

-       Mas ouçam lá! Digam só: que estórias querem vocês que eu comece a contar? 

-       Já disse: a da papaia. 

-       Com papaia faz-se doce, ou come-se de sobremesa... até há quem faça sumo, mas estórias (não sei como) ninguém as faz com certeza .

-       Quem foi que te disse a ti? 

-       Digo-te eu. A papaia  que eu comi (já faz tempo, muito tempo)

-       Não digas nada, é melhor ... Comeste, nem convidaste (grande traste)! ...

-       Vamos então a saber : qual é a estória que querem que eu comece a escrever?

-       Já disse e não volto atrás - a do mar.

-       Há-de ser e da papaia. Se ela é tão morreu.

-       Morreu como?

-       Aqui na minha barriga.  Tão docinha! E eu, se queres que te diga... boa assim, para se comer, tem de ser melhor até p´ra contar ...

-       Contarei: "Era uma vez, no alto da papaeira, uma papaia que caiu no mar" ...

-       Caiu como? Nunca vai ! Papaia  em quintal é longe do mar. Como é que pode, a papaia, cair na arei da praia? Afinal !!! 

-       Deixa ouvir. A estória mesmo, é que ela caíu na água.

-       Caíu nada. Quem é que viu a papaia (que é doce)  ficar salgada?

-       Quem sabe se ela não era uma papaia diferente: muito madura, amarela...

-       Mentira, camarada!  Se era assim amarela é porque era um mamão que a papaia é encarnada.

-       Querem ouvir, ou não querem? Ou acabam de discutir, ou eu não conto mais nada.

-       Está a ver? Este homem diz cada uma! ... Diz que não conta mais nada e até agora (que eu saiba) não escreveu, nem contou, p´ra  gente  estória nenhuma.

-       Não contou, estava a contar a da papaia amarela.

-       Encarnada. EN-CAR-NA-DA.

-       Mas afinal - são vocês que contam , ou sou eu que conto?

-       Pronto! Pronto! Não vale a pena zangar. 

-       Conta sim. Foi para ouvir contar que eu vim.

-       Espera lá, mas eu disse ...

-       Que chatice! Não voltes a interromper.

-       Que foi mesmo o que disseste? CHATICE? Mas isso é um palavrão que não se deve dizer. 

-       Desculpa que  foi sem querer.

-       Pois sim, estás desculpado. Agora fica quieto, com atenção, bem calado... vamos ouvir a estória, ou se quiseres discutir,  vai falar para outro lado.

-       Conta então, que já estou  pronto.

-       Conta essa estória, esse conto, da papaia que haveria ...

-       Contaria. Contaria, se ainda tivesse tempo ... Mas vocês tanto falaram, tanto e tanto discutiram que o tempo foi-se e, passou. Acabou! Já lá foi a nossa hora e agora não posso  escrever mais nada. A não ser .... uma quadra.

 

UM SÁBIO FAZ-SE A OUVIR

UM HOMEM A TRABALHAR

UM TOLO, A MANDAR VIR

A DISCUTIR E A TEIMAR.

 

                                                    (KOTA KURIKA)

                                        JORNAL DE ANGOLA / 272/l7.10.83

COMO SE FAZ UM TOLO
Como se faz um tolo

CONTOS INFANTIS

CONTOS INFANTIS

O caçador e o Veado
O CAÇADOR E O VEADO

Há muito tempo já -  há muito tempo - que o caçador saía e não caçava. Há muito tempo já - há muito tempo - que ele andava  e andava e não via nem um rato que desse para caçar.

 

    Mas bichos, claro que havia. Tinha a certeza -pegadas, sítios de capim pastado, os cócós ainda frescos, mas ver um só animal, isso é que não. Há muito tempo já - não via nada.

 

    Um dia - há muito tempo também - DINIANGA DIA NGOMBE ficou à espreita na mata, quando viu vir um veado. Assim só - come que come, sem mais quê, nem mais cautela.

    "Estás a ver?! Amanhã vou-te caçar - pensou ele, o caçador. Amanhã, mesmo amanhã, não vais conseguir fugir. De um só tiro (bem centrado) ficas aí, amanhã. Sorte da minha panela, vai ser mesmo o teu azar"...

       E ao outro dia bem cedo, preparou a espingarda.Tomou a faca que andava sempre com ele. Fechou os cães num cercado p'ra  não espantar o bicho. Seguiu andando bem cedo (como eu já disse primeiro) e chegou. 

       "Onde me vou esconder? - pensou outra vez o homem. Aqui não posso (logo o veado dá conta). Ali não consigo (com o vento assim a correr, ele fareja de pronto, e sabe que estou aqui). Melhor é subir na árvore. Este bicho quando come, fica de cabeça baixa: não vê nada. E o vento (se passa vento) leva p'ra longe o meu cheiro e, deste modo, o veado, escapa de me sentir".

E assim pensando, subiu. E assim  subido, esperou.

Veio o dia. Amanheceu. E do veado, nem sombras.

Veio a tarde. O sol queimou. E do veado, nem cheiro.

Veio a noite, quase noite, e do veado...nem nada.

Ficou ali todo o tempo, e o veado... quem viu?

Ao outro dia voltou.

        Mais uma  vez lá em cima, mais uma vez esperou. Veio o dia. Veio a tarde. Veio a noite, quase noite. Primeiro foi que amanheceu. Logo então o sol ardia. E quando, já à tardinha, o homem deseperava, o veado vinha vindo... de mansinho, pastando no seu descanso, tão descuidado e contente que o caçador...

        ...teve tempo de mirar, de apontar bem (bem no centro) de se compor lá em cima e de pensar: " Atiro agora, ou ainda não atiro"? E sem demora atirou.

        O veado caíu.

        E o sol (já quase no fim do dia) começou também lá longe, a querer descer p'ra dormir.

        " Tenho de esfolar o bicho" - falou o homem consigo, retirando a sua faca. "Antes da noite chegar, tenho de o ter arranjado".

       E começou com cautela (jeito de não estragar, a pele que tinha valor) a esfolar o veado.

         E quando já tinha tudo pronto (com a pele bem arrumada) olhou e viu: o veado, FUIM !!! Escapou. Cheio de frio coitado, sem o casaco da pele...  

- Dê-me a minha pele, senhor. Estou aqui meio gelado.

O caçador nem ouvia. Numa zanga. 

- Essa então! Como é que você fugiu? Há direito? Tanto trabalho que eu tive de esperar, de matar, de esfolar, e você foge-me assim? Sem dizer nada? Que educação é essa que a sua gente lhe deu? Venha cá, senhor Veado.

-       Senhor, não. Eu ainda sou menino.

-       Ai é?! Pois então muito pior. Que anda um menino a fazer. Dentro  da mata sozinho e  a uma hora destas?

-       Tive fome e vim comer.

-       Ai é?! Você teve fome e já comeu - eu tenho fome, e preciso de comer.

-       Coma então. Fique à vontade. Dê-me só a minha pele, para eu poder ir embora.

-       Quem disse que vais embora, se és a minha comida? Quem disse que vais embora, se eu já te cacei a tiro?

-       Deixe a conversa p'ra logo: atire-me daí a pele.

Teimoso, o homem teimou:

-       Ai não atiro, não. Se eu atirasse, sujava. Vem buscá-la.

-       Já fui parvo e aprendi: uma vez só é descuido, duas vezes é burrice... Atire, não tenha medo. Se suja, posso lavar - água é coisa que não falta.

E o caçador muito esperto:

-       Não senhor: "Quem pede emprestado limpo, não pode entregar sujo".

-       Emprestado?! Deixe de ter cerimónias. Suja de sangue já está, com o tiro que me acertou. Ou você me dá a pele, ou vou-me embora sem ela. 

-       Não tens vergonha?! Apareceres nú em casa? A tua mãe, o teu pai, o que é que vão dizer?

-       Dizem nada. Porque vergonha, vergonha, é mesmo p'ra ter você. Chega a casa e vai contar... “Atirei, matei e esfolei um veado. Vou preparar a panela, dirá a sua mulher. Não. Pele de veado não se coze na panela, é no sol que fica seca. Mas você matou o quê? Matou a pele, ou matou o bicho?"

-       Matei o bicho. Matei-te ou não te matei?

-       "Melhor que dizer matei, é deitar o osso fora e poder dizer: comi!".

 

E de um pulo, o veado, perdeu-se na escuridão.

O caçador? Nem te falo... boca aberta e mãos no ar, ficou na mata parado, a ver o bicho bazar. 

 

DARIO  DE  MELO

Modificado

Tradicional Umbundo

JORNAL DE ANGOLA

Sup.319.1.l2.84

Versão Definit. no Livro QUERES OUVIR?

CONTOS INFANTIS

CONTOS INFANTIS

Vamos fazer teatro "A banda da Bicharada"

PERSONAGENS

Apresentadora, gato, pato, galinha, galo, rato, (não aparece).... burro.

 

 

APRES... Ora vivam, meus meninos: gente pequena e crescida, gente velha, gente nova... Ai, vocês não me respondem? Não cumprimentam nem nada? Tenham maneiras e sejam gente educada: ORA VIVAM! Assim está bem. Vamos pois ao que convém: temos para vos apresentar um conjunto musical: A BANDA DA BICHARADA! Aí, vocês não dizem nada? Nem sequer muito obrigada a quem teve esta maçada de trazer p'ra aqui o gato, o pato e o cão, a galinha KIKIRI, o galo KARÓKOKÓ, o rato XIRIM-XIXI e  o ...(Zurrar do burro que aparece) Que vens tu aqui fazer?

 

BURRO ... (Zurrando, mima como quem responde) Venho cantar.

APRES ...  Mas tu não sabes cantar!...

BURRO ...  (Zurra fazendo sim com a cabeça).

APRES...    Que voz tão feia, rapaz...

BURRO ...   (Zurrar lastimoso de quem chora).

APRES ...   Alto lá! Pára um bocado. Se queres cantar, cantarás...

BURRO ...  (Zurrando de alegria e dançando)

APRES ...   Pára! Pára que já chega...

BURR... (diz que sim com dois zurros).

APRES ... Eu disse: CHEGA! Não vês que estou a falar, apresentando aos meninos a Banda da Bicharada? Este conjunto que canta a canção mais escutada, a barulheira mais linda desta nossa temporada!... Criançada atenção: vamos agora escutar...

BURRO... (Zurra que zurra e mima que canta)

APRES...  (gritando) Pára! Pára que chega...

BURR... (Zurra e diz sim com a cabeça).

APRE... Eu disse: Pára! Você é burro seu BURRO. Você não sabe cantar: Ou se cala ou sai da sala - vai p'ra rua passear.

BURRO... (dá um zurro breve e senta-se num canto).

APRES... Ora bem que até que enfim, vamos poder começar. Meninas e meninos, tenho o prazer de trazer e a honra de apresentar o GATO mais miador que na mata pude achar...

(Entra o gato a miar. O burro solta um zurro breve. A apresentadora faz um gesto de ameaça).

APRES... A seguir... o grasnador que nos vem também do mato. Meninas e meninos vai entrar o Senhor PATO.

    (Olha para trás à espera do zurrar do burro que não vem. Entra o Pato grasnando com grande alarido).

APRES... Abanando o seu rabinho, com muita satisfação (o cão entra de costas) podem ver pelo focinho: ladrando, afinadinho, temos um outro cantor: O CÃO; (  em vez de ladrar o cão começa a uivar).

APRES... Que é lá isso! Enganaste-te na música?

CÃO.... (Diz que sim com a cabeça enquanto LATE lastimosamente). O Burro entra a zurrar com alegria).

APRES... Tu cala-te: eu já te disse que não sabias cantar. E tu que és cão vê se aprendes a lição e se te pões a LADRAR.(Virando-se para o público).Os meus amigos desculpem. Sei que nos vão desculpar: é que este cantor é novo, e vive em casa dos primos (o primo do cão é LOBO) por isso é que ele se engana e em vez de ladrar mansinho - uiva, mas uiva com gana.

CÃO... (Começa a uivar).

APRES ... Eu não te mandei uivar. Estava só a explicar.

(Entra a Galinha apressada cacarejando e andando de um lado para o outro, põe um ovo e vai embora. Salta o Galo cantando. Sobe para cima da cadeira e apodera-se do microfone. A Apresentadora luta para lho tirar, mas ele resiste e canta. Acaba triunfante, desce da cadeira e faz vénia à espera dos aplausos).

APRES...  Ora já temos aqui toda a gente do conjunto. Claro que falta o Rato (atrasou, que eu não o vejo) ou foi comido pelo gato, ou foi  p'rá loja do queijo. E a Galinha também, que saiu toda contente (há tanto não punha um ovo, que foi correndo e foi logo, a dizer a toda a gente). (Entra a galinha de novo cacarejando, de um lado para o outro inquieta).

APRES ... Tu, outra vez ? Não pode ser: a pôr dois ovos por dia, vais por certo enfraquecer... (de rabo virado para o público, o ovo vai aparecendo e acaba por rebentar). Eu logo vi que os teus ovos não seriam de verdade. E tu não cantas, ó galo? (Virando-se para o público) Deixá-lo! Quando as coisas correm bem, o oportunista do galo desata a cantar p'ró céu: ( imitando) Kókórókókó, este ovo é meu! Este ovo é meu.

(O Galo vem a correr para o micro. Repete-se a luta mas breve).

APRES ... Vai já para o teu lugar. Vamos então começar. Tu, gato cantor, dá-me o Mi de miar (o gato mia abafado pelo zurrar do burro) . Eu disse Gato, seu BURRO.(Zurra breve lamentoso). E tu Cão, se já sabes a lição, dá-me o teu Lá de ladrar (o cão uiva. Atrapalha-se: mas não ladra). Estás muito desafinado. Dona Galinha por favor, dê-me o seu cacarejar (a galinha cacareja e sai correndo. Abaixa-se para pôr um ovo.) O melhor é acabar, mesmo sem fazer mais nada. Se a  Banda desafinar, vocês vão me desculpar, pois sois gente camarada. 

Vamos então começar: A BANDA DA BICHARADA.

                                  

Entra o burro e mais o cão

                                   Ladra a galinha e o gato

                                   Mas que grande confusão

                                   Q'há nestes cantores do mato

                                              ..................

                                    Canta o galo

                                    Mia o gato

                                    A galinha cacareja

                                    Chia o ratinho do mato

                                    Ladra o cão e grasna o pato

                                     Interrompe porque é chato

                                    O Burro que tem inveja.

 

                                                   

                                                                           DARIO DE MELO

                                                                 AS NOSSAS ESTÓRIAS

                                            JORNAL DE ANGOLA/Sup./?/l985(?)

CONTOS INFANTIS

CONTOS INFANTIS

VAMOS FAZER TEATRO
"A banda da bicharada"

1 - O menino veio a correr e disse admirado:

- Avô, o nosso vizinho tem força! Nem meia hora levou a cortar a mangueira velha.

O avô sorriu:
- É ! ele deu cabo em meia hora, o que custou trinta anos para crescer.

O menino nunca tinha pensado. Para ele que tem só nove, trinta anos é muito.

- Então, avô - se eu planto uma árvore hoje, ela só vai estar grande quando eu tiver da idade do meu pai?

- Sim. A árvore demora a crescer, mas pode viver mais que o homem. Tem árvores, como o embondeiro, que vivem até três e quatro mil anos. 

 

2 - E o avô continuou a falar:

Pensa só - se você vai na terra onde o Senhor Jesus nasceu, pode encontrar árvores que lhe viram passar há dois mil anos. Árvores do tempo de Jesus que ainda hoje estão em vida.

E o menino, a pensar com ele mesmo:

- Puxa avô! Gostava de ver uma árvore assim velha. 

E o avô ensinando:

- E pode ver. Você também tem aqui na nossa terra árvores muito antigas: na embala do Bailundo você tem árvores que os nossos reis mandaram plantar. Na “Mulemba Xiangola”, em Luanda, se sentou ali o nosso rei Ngola Kiluange e a Rainha Ginga. No Cuanhama e noutros sítios, tem sempre uma árvore com história para contar...

E o menino admirado:

- Se as árvores não falam, como é que contam histórias, avô ?

 

3 - E o avô explicando:

 As árvores são igual com os livros. Para os livros falarem é preciso a gente saber ler. Para as árvores falarem é preciso que os mais-velhos lembrem as coisas acontecidas com elas.

 - E o avô sabe a história de uma árvore?

E o avô apontou e o menino viu: era um velho pau de abacate. Tão velho que quase não dava fruto. O menino riu com troça e perguntou:

- Aquela  árvore tem história?! Um pau seco que só serve para lenha. Melhor é cortar.

- Você tem razão, meu neto. Mas antes de lhe cortar, eu vou contar uma coisa. Quando  eu era mais miúdo que você, meu avô é que lhe plantou.

 

4 - O menino fiou admirado:

- O avô do avô, é meu quê na família?

- É bisavô do teu pai e é o teu trisavô...

- Xi!!! se espantou o menino.

- Pois então, o meu avô me chamou um dia e disse: “Meu neto, vamos plantar junto uma árvore para você lembrar de mim quando eu morrer”.

E plantámos a árvore e ela cresceu. Todos os meus anos que são oitenta, vinha aqui, apanhar a sua sombra, estimar o meu avô. Agora, quase não dá abacate, mas ainda dá sombra, ainda pára as poeiras e os ventos, ainda me lembra do meu mais-velho...Vamos cortar a árvore, meu neto?

5 - Ficaram os dois - avô e neto - sem dizer nada. Depois, o menino é que falou:

- Afinal, avô, não podemos cortar a árvore. Ela vai ficar ali até se falecer por ela própria. Vou lhe mostrar nos meus filhos. É a Árvore da Família. Vou lembrar do avô e daquele trisavô que lhe plantou.

- E vai dizer a eles que este  pau que você pode cortar em meia hora, até plantar, crescer, dar fruta, levou setenta anos a chegar aqui. Ninguém pode estragar aquilo que levou o tempo da tua vida para crescer.

6 - E o menino muito curioso:
- Quantas árvores o avô já plantou?
- Muitas. Na minha idade, não passou um só ano, sem plantar uma árvore. Por isso o pó e o vento não chegam aqui em nossa casa, por causa das árvores que eu lhe plantei à volta. Por isso a gente tem fruta. Por isso, a gente tem lenha. 

- P’ra quê o avô plantou ontem uma árvore? Não lhe vai ver crescer...

- A gente não planta só para cada um. Os velhos plantam árvores e é para os filhos, para os netos, assim como fez o seu trisavô. Ele plantou para mim, para o seu pai, para você...Cada árvore que fica é uma lembrança para a família que há-de vir.

 

7 - Foram andando - o avô e o neto - para a tal de Árvore da Família. Sentaram. Se encostaram nela e gozaram o seu fresco. Disse o avô:
- Olhe, meu neto: tem gente que diz que um homem só é mesmo homem de verdade quando faz um filho ou planta uma árvore.
E o neto lembrando:
- Então é isso mesmo que os mais-velhos estão a falar: “Cada qual deve plantar a sua  árvore”...
- É isso mesmo! Por isso a gente fala assim - um homem, uma árvore.

Um Homem - Uma Árvore

CONTOS INFANTIS

CONTOS INFANTIS

UM HOMEM - UMA ÁRVORE

A RAPOSA E A TOUPEIRA eram comadres no roubo. E combinaram assim: uma roubava galinhas, a outra roubava fuba que tirava do terreiro onde as mulheres a pisavam.

 

          Um dia, voltavam de ter roubado (depois de fazer o funge e arranjar a galinha) quando a toupeira lembrou:

-       E se antes de comer, fossemos tomar banho no rio?

-       Com este calor agora... acho bem.

           Sairam, foram então. A toupeira mergulhou. E como tinha um buraco mesmo debaixo da água - mteu-se por ele fora, foi andando, foi passando, e logo chegou a casa. Foi-se à galinha e ao fungi , e mastiga que mastiga não deixou nem uma  amostra.

E regressou numa pressa. Saíu da água e gritou:

-       Já tomei banho, comadre. Podemo-nos ir embora.

Assim chegaram a casa, e a raposa, coitada, de comida só viu ossos.

-       Quem é que terá roubado a galinha que fizemos?

-       Como é que queres tu que eu saiba, se estive sempre contigo?

E ao outro dia na mesma: foi a raposa às galinhas e foi a toupeira à fuba. Bateram o fungi, apuraram o molho - estava a galinha cheirando um apetite daqueles, quando a malandra lembrou: 

-       Vamos lavar-nos ao rio?

-       Como não?! "Gente que é educada, deve comer bem lavada".

 

           Saíram e chegaram. A toupeira mergulhou, entrou pelo buraco e saiu junto da casa. E, na galinha e no fungi (morde que morde e mastiga) comeu o almoço todo. Regressou, saiu da água, e gritou à companheira:

-       Já tomei banho, comadre. Podemo-nos ir embora.

E a mesma cena de ontem a repetir-se agorinha.

-       Quem terá sido o ladrão que nos comeu o que é nosso?

-       Como é que eu posso saber se estive sempre consigo?

E, a raposa, já com fome de doer, pensava: "não sei como esta comadre aguenta tanta fome! Eu por mim comia um galo inteirinho. Galo grande. Não pode ser um pinto ou uma galinha qualquer. Tenho fome que até dava p'ra matar um galinheiro".

Lá foi a raposa andando em busca da sua carne. E a toupeira, esquivando, para ir buscar a fuba. E tudo voltou igual...

-       Tomamos banho, comadre?

E a raposa hesitando:

-       Quem sabe se hoje o ladrão tem medo de vir aqui?

-       Realmente! Era de ser descarado vir roubar todos os dias.

-       Também só se adivinhasse que a gente hoje ia ao rio.

-       Pois é.

-       Só se estivesse a espreitar... A comadre viu alguém?

E a toupeira (com os olhos de inocente) mentirosa e fingidora:

-       Não vi, não.

-       Vamos então. Seria de muito azar que o ladrão regressasse.

E assim chegaram ao rio. A toupeira mergulhou, meteu-se pelo buraco, chegou a casa, comeu e voltou logo a correr.

-       Já tomei banho, comadre.

-       Vamos lá que estou com fome.

Corre que corre, a raposa e a toupeira - uma  cheínha de fome e a tal de papo cheio. Mais, outra vez o ladrão...

-       Quem terá sido o malvado?

-       Como quer então que eu saiba, se estive sempre consigo?

-       Amanhã saio mais tarde. Só saio ao meio-dia.

E a toupeira dizendo:

-       Tão tarde não posso. Ao meio-dia, estão as mulheres trabalhando. Tenho de ir para roubar, enquanto estão a dormir.

E foi. E a raposa ficou. Ficou - não é bem ficar, porque eu vi que ela saiu pelo caminho do rio. Meteu-se pela água fora, procurou e procurou até achar o buraco.

"Ora então, esta comadre, era assim que me enganava"?

E foi ver do outro lado, onde o buraco ia ter: pertinho mesmo da casa. Escondido, disfarçado, com um monte de capim.

"Ora então, a espertalhona !... Vais só ver como me pagas".

E montou uma armadilha.

           E mais chegou a toupeira com o seu saco de fuba. Chegou depois a raposa com o seu frango roubado. Acenderam fogo, cozeram, apuraram ...

-       Vamos tomar banho ao rio?

Falava agora a raposa, e a comadre, contente:

-       Vamos pois - estou tão suja. Acarretar com farinha, fica a gente toda porca.

Foram. Chegaram. Experimentaram a água: estava boa. Mergulharam. A toupeira, já se sabe: enfiou-se no buraco e quando estava a chegar ao outro lado, caiu na tal armadilha - presa e bem presa.

-       Socorro, comadre, acuda.

-       Ai é? Quem és tu? Não te conheço.

-       Eu sou a sua comadre.

-       Não pode ser, minha amiga. A minha própria comadre, está no rio a tomar banho.

-       É que eu vim a casa ver se encontrava o ladrão...

-       Porque é que não avisou, p'ra eu vir consigo junto? 

-       Porque assim se houvesse azar (como este azar da armadilha) só ficava um azarado. O outro vinha ajudar.

-       Ai é?! "Você mete a mão no fungi e mete o fungi na boca - não é nada p'ra comer, mas para ver se ele está quente?".

-       É isso, comadre, é isso.

-       Pois é! Então adivinhe agora: "se dois cozinham e só um é que vigia, quem foi então que comeu?

 

Como é que a estória acabou, não sei. O que sei e me disseram é que a raposa e a toupeira nunca mais foram amigas. E depois do acontecido, com vergonha de lhe verem, vive a toupeira em buracos: escondida, bem no fundo, metida mesmo na terra.

        Vergonha e medo também que lhe apareça a raposa a perguntar  outra vez:  " se dois cozinham e só um é que vigia, quem foi então que comeu?".

 

DARIO  DE  MELO

 Adaptação 

Tradicional Umbundo

JORNAL DE ANGOLA/Sup.318/24.ll.84

Editado no Livro  QUERES  OUVIR?

A raposa e a toupeira

CONTOS INFANTIS

CONTOS INFANTIS

A RAPOSA E A TOUPEIRA

Pus-me a pensar e a ouvir o que dizia a Tesoura à Caixa de Fósforos...

-       Pois nem lhe conto o trabalho que tenho! Corto vestidos, fatos e cabelos - e hoje, como vê, vim ajudar estes meninos a brincar (e a recortar ) bonecos de papel.

-       Ora! O que você faz é lixo. Nem quero ouvir o barulho que a mãe deles vai fazer.

   E a mãe entrou (e começou a ralhar: a sala toda suja, tudo tão desarrumado...)

-       Que lixeira é esta?

-       Estamos só a brincar...

-       E a sala é que é lugar de brincadeira?

-       A gente varre depois, mãe. 

   Se varreram ou não varreram, não sei: Esqueci de ver. Fiquei com atenção na Caixa que falava e vinha lá de dentro do fundo da cozinha.

-       Eu não disse? Porque é que você não escolhe um trabalho como o meu? Isto é que é trabalho: limpo e importante...sem mim que acendo o lume, não haveria comida: o leite dos bébés não aquecia; o chá dos mais velhos não fervia; o funge de todos não se podia fazer. 

E a Tesoura (zangada agora) respondendo com raiva a tanta vaidade tola:

-       Olha só como ela fala! Você já esqueceu a sua vida de queimadora de casas? De deitadora de fogo nas matas e nas lavras? De bandida matadora de passarinhos novos que são os menininhos do céu ? ... 

       

E lembrou-lhe (e começou a contar) a estória da perdiz que tinha quatro filhos. Três aprenderam a voar. O outro não: tinha asas pesadas de preguiça e só pensava em dormir.

        No tempo de caça, apareceram os homens e a Caixa. Fizeram uma queimada. Deitaram fogo a tudo quanto havia. Quem podia fugir, fugiu. Quem sabia voar, voou (e foram três os perdigotos que voaram). Um ficou, tinha preguiça, não quis levantar logo...Dormiu (até que o fogo chegou, até o fogo queimar, asas, preguiça e tudo...) 

        A Caixa ouviu, envergonhou e calou:

-       Afinal, quando mal utilizada, em vez de bem sou desgraça.

E a tesoura pensou:

-       Eu também. Ás vezes pico e até corto.

E as duas ficaram tristes: a Tesoura não queria cortar mais (enferrujou-se)  com medo de fazer mal . A Caixa começou a procurar água para se molhar (e se estragar) e não acender  mais nem um fósforo.

   Foi aí que eu, que estava mesmo à portinha da conversa, falei e disse:

-       As coisas não são boas nem más. É conforme o serviço que a gente com elas faz ...

   " Pedra que parte  a cabeça, também serve para segurar o muro".

 

        E elas ouviram e aprenderam. Juntaram-se e combinaram: 

        

-  Vamos trabalhar para um sítio onde ninguém nos obrigue a fazer mal?

 

           E foram. Entraram num hospital. Ali, a estória era outra ...   

Era uma vez, uma dona que ia ter um bébé.A gente sabe: Quando um bébé nasce é preciso água bem quente, tesoura fervida e mais o resto também. 

       A parteira chegou. A Caixa acendeu um fósforo. A Tesoura ferveu. 

       E o bébé, o menino (ou seria menina?) nasceu.

                                                      

DARIO DE MELO

JORNAL DE ANGOLA 

A pedra que parte a cabeça

CONTOS INFANTIS

CONTOS INFANTIS

A PEDRA QUE PARTE A CABEÇA

AVejam só, que a onça tinha medo do cabrito. E vamos lá que tinha um pouco de razão, porque o cabrito (que até por ser mais-velho, devia chamar-se bode) tinha chifres, barbicha grande, e uma cara de meter muito respeito. Respeito não. Medo é que era.

E o cabrito - que tinha idade de bode - esperto e ladrão, fazia tudo para que a onça acreditasse que ele era um bicho ruim.

- Ladrão, como? - estão vocês a perguntar ...

Eu conto tudo (tudinho) o que quiserem saber. Só não vale, nem é bonito, meter assim sem licença, palavra vossa em conversa do outro. Quem fala, fala; quem escuta, escuta ...

- E o que é issso de escuta?

É ouvir com atenção. Ainda agora eu falei, para não me interromperem, e logo-logo apareceu uma pergunta. Eu sei que ouviste o que eu disse. Só que ouvindo, distraído, se ouviste, não escutaste ...

Vou voltar então à estória da onça que tinha medo, do bode que era má cara, e do mais que aconteceu e vocês querem saber ...

- Ficámos então aonde?

No bode que sabia do medo que tinha a onça, explorava a senhora. Porque esta nossa irmã, tinha um palmar muito grande, e assim, com tantas palmeiras, tinha muito vinho em casa ... Vocês sabem ou não sabem, conhecem ou não conhecem, que o vinho da palmeira até se chama MARUFO? Pois é... Aqui mesmo nesta estória, se a onça tinha o vinho, o bode é que tinha a sede. E todos os dias chegava e era assim que dizia: 

- Bom dia irmã. 

- Muito obrigado. Bom dia - e a onça, cheia de medo, não parava de tremer.

- Está calor. Estou com sede.

- Pois é... o calor é muito.

- Pois é... a sede também, dizia o bode, fechando a cara e olhando p’rá cabaça do marufo.

De medo, a onça, quase nem podia andar. Tremia, e era a tremer que dava de beber ao tal de bode. Que bebia e mais bebia - depois de uma cabaça, outra. Depois de outra, mais uma.

- Até amanhã - dizia o bode sem pensar em pagamento.

- Fique bem, até amanhã - respondia a onça, sem receber, nem até só perguntar, quando é que você me paga... 

E no outro dia, e no outro, lá estava o bode outra vez;

- Bom dia, irmã.

- Muito obrigado. Bom dia - e a onça tremelicava.

- Está calor. Estou com sede.

- Pois é... o calor é muito.

A onça bem queria ver se escapava de entregar as cabaças de marufo. Fingia não entender o que é que o bode dizia. 

- Pois é... a sede também.

E a onça cheia de medo, dava de beber ao bode.

E o bode, bem que bebia, e quando mesmo, acabava - despedia, ia embora, nem dizia que obrigado, nem pagava.

Mas um dia...

Vinha o bode e vinha o filho - um cabritito pequeno, saltador e pernalta. Estava a onça e estava a filha - uma menina mais nova, que às vezes até saltava, mas hoje de tanto medo, nem mexia.

- Bom dia, falou o bode, cada vez mais malcriado. Quero beber, Tenho sede - E, conversando p'ró filho: Vai brincar com a menina enquanto eu bebo um bocado.

A onçazinha, coitada, cheínha de muito medo:

- Mas é que eu nem sei brincar, nem saltar como um cabrito.

- Não sabe, aprende, ora essa. Vai brincar que mando eu.

E a menina, nem pio - que o bode tinha uma cara! O bode tinha um focinho!... E aquela barba de mau, e os olhinhos de malandro... a menina nada disse, com muito medo lá foi.

- Vamos brincar ao de quê? - perguntou o cabritinho.

- Você é mesmo quem sabe, se é mesmo você que manda.

- Lutamos. Vamos lutar.

- Mas isso não é bonito: a gente nem está zangado...

Cheio de peito, o cabrito:

- Não faz mal. Podemos zangar agora.

E a oncinha a tremer:

- Mas eu não quero zangar ... e mesmo, não há direito, porque você é mais forte, e além de ser cabrito, é mais velho...

- Já disse: vamos lutar.

E, sem mais conversa, atirou-lhe uma marrada. A oncinha desviou: deu um pulo à sua esquerda e agarrou o cabrito, mesmínho pelo pescoço. 

- Mé... Mé... berrava o coitado - tu estás a magoar-me.

- Tu é que querias lutar. Foste tu quem atacou.

E a menina não largava:

- Afinal a tua força está aonde, cabrito? 

- Mé ... por favor, podes deixar-me ...

E a menina deixou, e foi ter com a mãe dela, e muito baixo contou...

- Venha mais uma cabaça, pedia o bode, contente. Este marufo é bem bom.

- É marufo de primeira, isso é - dizia a onça avisada, e já sem medo nenhum. Por isso é que eu vendo caro.

- Faz bem, comadre, faz bem: quem quer bom, paga melhor, dizia o parvo pensando que ainda metia medo.

- Então o mano concorda?

- Como é?! Não havia de concordar? Um marufinho como este, quem bebe, deve pagar. Ora então! E pagar bem.

- O compadre pensa assim? 

-Penso. Claro que penso.

- Então se pensa, compadre, porque é que pensa e não paga?

- Eu?

E o bode fez cara feia, mostrou chifres, mostrou barba, deu pulos, ficou medonho...Só que a onça sorria.

- Focinho de cara má, não paga marufo bom. Deixe de andar a dançar. Ponha aí o dinheirinho: são trinta dias do mês; são seis cabaças por dia ...

- Melhor é tomar cuidado - ameaçava o ladrão... Você não sabe quem sou?...

- Ai sei, compadre, isso sei. Agora mesmo é que eu sei: você é igualzinho à família do seu filho. Tem forças só na garganta p'ra chorar e dizer MÉ. Se eu lhe agarrar no pescoço... quer experimentar compadre?

Não quis. E trinta dias de um mês, a seis cabaças por dia (o bode nem disse nada) pagou.

E desde então para cá: nunca mais!...

Conto Tradicional Kissorongo

Adaptação livre de RÙBEN TITO

JORNAL DE ANGOLA /Sup.263/l5.10.83

Versão Definit. no Livro VOU CONTAR 

A Onça e o Cabrito

CONTOS INFANTIS

CONTOS INFANTIS

A ONÇA E O CABRITO

        Vocês sabem como a boca é preguiçosa: só fala e não trabalha, só come, come e mais nada.  As mãos é que sim:  fazem o serviço todo...Na lavra, semeiam, plantam e capinam; No almoço servem: acondutam  com o molho e levam o fungi  à boca.  Ela é quem come e quem gosta, quem fica assim, satisfeita...

        E sabem então porquê?

        Pois não sabem. Vou contar...

        Ali p´ras terras da Lunda, vivia a Boca e vivia a Mão. As duas na mesma aldeia.  Um dia aconteceu combinarem ir de negócio à Nhemba. 

Era essa a sua vida: iam para Sul, no Menongue, vender uns fardos de

Panos e mantas; voltavam depois para cima com as imbambas trocadas: traziam cabras e bois, ou mesmo ovelhas e armas.

 

        Andando e andando, tinham andado muitos dias já, quando o céu se escureceu. A Boca  pôs-se a falar:

 

-       Olha só, que vai chover. Vamos ficar mesmo mal - os fardos vão se molhar. Não escapa: os panos, nossas mantas, nosso negócio com a chuva, vai ser negócio ruim...

-    E porque fala e falava, a Boca nada fazia.A Mão - essa - cortava capim de um lado, arrancava paus do outro, sempre a ferver no trabalho de construir uma choça.  Acabou, meteu-se dentro. A Boca continuava...

 

         Mas quando a chuva pingando, ganhou vontade para cair com mais força pediu licença de entrar.

 

          - Aqui não te metes, disse a Mão.“Quem faz a casa, descansa no proveito”.  

        -   Tens razão. Eu vou ficar aqui fora.Deixa só que eu ponha dentro os fardos do meu negócio.

        -   Não . Também não. “Negócio de cada um, não se guarda em casa alheia”.

 

E chovia (se chovia!) e toda a noite chovia e acabou de chover. O Sol veio. Então a Boca (molhada pela noite inteira) falou e disse para a Mão:

-       Irmã: vamos esperar um pouco. Deixa-me secar a roupa e estender os meus panos.

-       Não. Já atrasamos bastante. Vamos mesmo assim embora. “Lagarto que fica ao sol, é porque não tem serviço“. A gente tem.

 

        E foram andando e andando e chegaram a uma aldeia e dormiram. A Mão abriu os seus fardos. Permutou bem: panos por ovelhas e cabras, mantas por bois e armas. A Boca bem quis vender, mas toda a gente gozava:

 

-       Quem vai querer por esses panos com bolor? Olha só!... 

 

        E  nem tinha acabado de tirar tudo, já estavam a voltar. A Mão é que tinha pressa :

 

-       Não percas tempo: se a boca  fala  e a orelha escuta, os olhos é que compram. Ninguém te vai comprar nada. 

 

        E voltaram - andando e andando nos dias do   seu regresso. No caminho estava um homem.

 

        -  Como é então, ó Boca? Voltas assim, carregada, sem fazer o teu negócio? Vamos fazer uma troca, disse o homem. Dá-me os teus panos  que eu dou-te o meu cão.

-       Um cão sózinho por estes meus panos todos?

-       Olha bem: este cão, não é mesmo um cão qualquer. O serviço que ele faz, é de apanhar elefantes.

 

 A Boca aceitou. E andando, sempre andando até chegarem à terra. Aí, sim senhor... 

       ... A Mão era bem cumprimentada. Vinha rica. Tinha bois e tinha cabras. Tinha ovelhas e tinha armas - tinha tudo.  A Boca nem dava para lamentar: vejam só, trazia um cão! 

        Um cão que apanha elefantes - muito bem ! E os elefantes estão onde, se na terra não havia? ... Então para que serve o cão ? 

 

         E o tempo que passou passou, até que um dia, na lavra...

 

         ... mandiocas que pões hoje, amanhã já te comeram. Andava ali elefante - ou só um, ou muitos mais, ninguém sabia de certo.

        

- Minha irmã, pediu a Mão, favor só um que  eu lhe queria: de me emprestar o teu cão.

-       Ai é?... Tu que me fazias pouco, agora queres o meu cão?

        E a  Boca fala-falou, disparatou  um bocado.  Ela também conhecia palavras de dar ajuda. Disse então:

 

-       Leva o cão mas tem cuidado: nunca lhe deves bater.

-       Podes ficar descansada. 

-       E olha bem, minha amiga - que não me percas o cão. Vê se tomas atenção: um cão que apanha elefantes,nem nada  o pode pagar.

 

        E a mão (que só pensa em trabalhar, fazer coisas, não perder tempo, sempre a mexer, a mexer) já estava sem paciência de aturar quem só falava. Pegou no cão foi-se embora. Entrou na lavra e esperou que os elefantes chegassem. 

 

Chegou um. O cão correu. O elefante caíu. Veio a Mão, trazia arma e logo ali o matou. Vocês sabem: “cão que tem nariz na carne, não espera por licença para poder mastigar“. E a Mão (que não pode estar parada, nem quieta, sempre a mexer que até bate) mal viu o cão a comer atirou-lhe uma palmada. Nem foi por mal. Mas só então se lembrou que não devia bater.

         Porque a verdade foi esta: mal ela veio e bateu, o cão sumiu (ou fugiu, ou até nem sei)...

 

-Minha irmã: venho-te pagar o cão.

 

Trouxe primeiro as ovelhas. A Boca olhou  e disse:

 

-       Estão gordas, estão. Mas só assim, as ovelhas, não dão p´ra pagar o cão.

 

E mandou buscar os bois. A Boca apreciou ... 

 

-       Lindos bois, isso é que são. Mas mesmo assim, tudo junto, não dá p´ra pagar o cão.

 

Foi a Mão - foi ela mesmo - buscar as armas que tinha.

 

-       Que boas que as armas são!  Mas falta ainda, não chega; não dá p´ra pagar o cão. 

-       Senhora - falou a Mão - não tenho mesmo mais nada. Já dei tudo quanto tinha. Mas como não chega ainda, trabalharei para ti. Vou ficar ao teu serviço.

 

E ficou. E é desde aí, que a Boca (a nossa Boca) só fala e come e mais nada. A Mão faz tudo:  cava, semeia, planta, capina, colhe, seca, lava, trata, cora, tempera, cozinha... põe no prato, mistura o funji no molho e até vai levar, mesmo à portinha da Boca.

 

E a Boca, sem mais trabalho, come. O funji nem mastiga : gosta, engole e fica assim, satisfeita à espera que venha mais ... 

 

Mas lhem só: e se um dia, a Mão pensa em descansar? 

 

Coitada da D. Boca! Ou come as suas palavras, ou se quiser mandiocas tem mesmo que trabalhar.

 

                                    

                                                   CINQUENTA CONTOS QUICOS

                                    Adaptação Livre de  DARIO  DE  MELO

                                                         AS NOSSAS ESTÓRIAS

                                     JORNAL  DE  ANGOLA/

Sup. Nº 248/02.07.83

A mão e a boca

CONTOS INFANTIS

CONTOS INFANTIS

A MÃO E A BOCA

     Era uma vez uma estrela. Pequena, pequenina. Um botãozinho de luz. Um quase nada. Fazia pena vê-la: assim sózinha, sem cor nem brilho, no jardim do céu abandonada. 

      Porque o céu é um jardim, onde as estrelas são flores que o Sol semeia de luz, com luz de todas as cores ... 

      E a estrela (pequena pequenina) a estrelinha que nem cor sequer tivera, era no céu como uma menina (sem nome) procurando saber quem é que era.

      -  Pai Sol, chamava ela, com luz tão fraca, pobre e amarela, quem sou eu, assim abandonada, num canteiro perdido do teu céu?

      E o Sol não respondia. Não falava. Palavras? Nem só uma ... E a estrelinha chorava. Uma lágrima de luz que lhe caía (mas tão pequena) que não chegava a cair em parte alguma.

      E tanto perguntou e perguntava. E tanto caminhou e caminhava, tanto andou (que já  sem saber bem aonde estava) foi dar a uma estrada e descansou.

- Estrada de luz, pedrinhas do céu, dizei-me: sabeis para que sirvo eu?

      Ninguém lhe falou, nem lhe respondeu (as estradas não falam...)

- Ai!  Todos se calam. Que pobre sou eu.Vou seguir p´ra Lua, que é na outra rua por detrás do céu ...

E à Lua chegou. E a Lua dormia.

 - Oh! Lua, acordai, assim lhe dizia.

E a Lua acordou.

- P´ra que sirvo eu, que nem sei quem sou ? 

E a Lua sorriu e aconselhou!"Voasse p’rá terra que lá saberia , a terra é tão perto".

E a estrela voou, até que calhou, cair num deserto.

      Que ideia!

       Coisa tão feia,...um deserto!

       Só areia e mais areia! (e tanto, tanto calor, tanto vento, que a gente até pensava que a Lua fora má e não teria, nem coração, nem amor, nem sentimento).

         E a estrelinha ficou. Mais triste ainda e sozinha...

        E um dia... 

    …uma formiga caminhava pelo deserto além, morta de sede. E vêde: viu a estrela que na areia descansava e julgou que fosse o mar ...

      - Parece uma miragem: tanta água! Tomarei banho. Beberei primeiro. Vou acabar aqui minha viagem, para aqui construir um formigueiro. 

E foi toda contente, chamar suas irmãs que andavam perto (formigas e formigas, mortas de sede também neste deserto). 

E a estrela menina (pequenina) que era afinal, chuva que o vento esquecera ...

       A estrela sem nome (tão sózinha)  que nem sabia quem era ...

A estrela diferente (a estrelinha do céu) que gritava a toda a gente: "E eu? Para que       sirvo eu ?"...  Agora sabia para que servia. Quanto é que valia ...

 

Dizes tu ou queres que eu diga?  Ou queres tu dizer primeiro?

 

Era água da sede das formigas (e valia) a vida de um formigueiro todo  inteiro.                                       

                                                              DARIO DE MELO

            JORNAL DE ANGOLA/

Sup.179/05.12.81

      Trad.Russa -Revista Infantil URSS -nº3 -Março 83

Colecção Miruí (INALD) 1986

A estrela sozinha

CONTOS INFANTIS

CONTOS INFANTIS

A ESTRELA SOZINHA
© Copyright - Dario de Melo
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